No dia 13 de maio, o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, faleceu aos 89 anos, em decorrência de um câncer. Figura icônica da esquerda latino-americana, Mujica partiu, mas deixou um enorme legado político, e sua imagem já figura entre as maiores lideranças políticas do planeta.
Mas nada melhor do que os uruguaios para falar sobre o que significou o governo de Pepe Mujica e os simbolismos que sua partida deixou. Com esse objetivo, o artista plástico Thiago Prado, que estava no Uruguai quando Pepe faleceu, decidiu gravar um documentário que acompanha o cortejo fúnebre do líder da esquerda latino-americana.
Te podría interesar
O filme, intitulado "Hasta Siempre, Pepe Mujica", terá sua pré-estreia no sábado (21), no Centro Cultural Al Janiah. A Fórum assistiu ao documentário com exclusividade e podemos afirmar que o filme de Thiago Prado captura a emoção e a tristeza dos admiradores de Mujica.
Assim, o documentário de Thiago Prado se apresenta como uma emocionante homenagem, que consegue mesclar a morte de um grande líder que viveu como pregou e, ao mesmo tempo, entre lágrimas e dor, sintetiza, por meio dos depoimentos, os vários simbolismos que Mujica carregava.
Te podría interesar
A seguir, confira uma entrevista exclusiva com o diretor Thiago Prado e com toda a equipe que tornou realidade o documentário "Hasta Siempre, Mujica".
Fórum - Quando surgiu a ideia e por que fazer um documentário sobre Pepe Mujica?
Thiago Prado: Estávamos em Montevidéu de férias quando vimos o anúncio da morte de Pepe Mujica. Entendemos que era um momento histórico importante e decidimos cancelar o passeio que tínhamos para o dia seguinte para que pudéssemos acompanhar o cortejo. Conversando com amigos via WhatsApp sobre o acontecimento, incluindo a nossa produtora Lígia, que estava em São Paulo, chegamos à conclusão de que não podíamos deixar de registrar aquele momento. Acredito que Pepe Mujica deve ser inspiração para todos que sonham com dias melhores, que lutam pelos direitos humanos e que acreditam na vida. O Uruguai, sob sua presidência, se tornou exemplo mundial, com avanços em pautas sociais importantes, incluindo a legalização do matrimônio igualitário — o reconhecimento da união entre casais do mesmo sexo. Além disso, ele legalizou a comercialização da maconha, que é controlada pelo Estado. São temas que, no Brasil, por exemplo, ainda estamos começando a avançar, dependendo do Poder Legislativo.
Lígia Francilino: Eu estava em casa, refletindo sobre o "paso a la eternidad" de Pepe quando recebi a mensagem do Thiago contando sobre a ideia do documentário. Achei a ideia maravilhosa e imediatamente quis fazer parte desse projeto tão bonito. Aqui no Brasil, grande parte da população não tem conexão cultural com outros países da América Latina, alimentando a falsa percepção de não pertencermos à nossa latinidade. Então, o documentário de Thiago pode servir como uma porta para essa conscientização. É absolutamente necessário!
Fórum - Qual legado Pepe Mujica deixa para a esquerda?
Thiago Prado: Além dos avanços nas pautas sociais que ele promoveu em nosso vizinho da América Latina, considero que Pepe nos mostrou a importância de não perdermos a poesia e a capacidade de sonhar com novos futuros. Em uma realidade distópica como a que vivemos, precisamos cada vez mais de utopias. E é isso que, à sua maneira, a extrema-direita tem vendido às pessoas.
JL Bruno: O legado é a certeza de que não podemos deixar de lutar. A semente da resistência.
Lígia Francilino: Acredito que o maior legado que Pepe nos deixa é a memória de nossa humanidade, uma obviedade tão fácil de ser esquecida, como o genocídio em Gaza, por exemplo. E a capacidade de sonhar. Sonhar com a nossa "Pátria Grande" já não contempla, um conceito ainda carregado de patriarcalismo. O legado de Pepe me permite sonhar com um porvir onde a "Mátria Grande" seja possível, onde haja integração regional não apenas dentro de um ideal romantizado, mas movida pela urgência estratégica em busca da união sociocultural e econômica da América Latina.
Jéssica Fulganio: Como brasileira vivendo no Uruguai nos últimos anos, pude sentir de perto o contraste entre o projeto de país que Pepe representou e o que foi colocado em prática pelo governo Lacalle Pou. Mujica nos deixa um legado que vai muito além das políticas públicas: ele nos ensinou que ética, humildade e coerência não são virtudes do passado, mas fundamentos vivos de uma prática política possível.
Em um momento em que a extrema-direita sequestra a linguagem da emoção e vende falsas utopias, Pepe nos lembra da potência da ternura e da solidariedade. Seu legado é profundamente latino-americano e afetivo: é a insistência na esperança como ato político. Ele encarnou o conceito de "governar com poesia", e isso é revolucionário.
Gustavo Ferreira: O legado de Pepe Mujica para a esquerda é um sopro de coerência em tempos de vaidades e contradições; é a lembrança viva de que é possível governar com ética, ternura e pés descalços no chão da gente. Sua vida austera, mais que símbolo, é denúncia: contra o consumo desenfreado, contra a política do espetáculo, contra a lógica do lucro acima da vida. Mujica ensinou que a revolução não mora só nos discursos inflamados, mas nos gestos pequenos, nos campos cultivados, no respeito à dignidade humana.
Ele plantou a semente de uma esquerda mais humana, sensível às dores do povo, mas também crítica de si mesma — uma esquerda que escuta, que duvida, que se reinventa sem trair seus princípios. Seu legado é a utopia com os olhos abertos, sem romantismos, mas cheia de esperança.
Fórum - Vocês vislumbram novas lideranças da esquerda (seja no Uruguai ou fora dele, como no Brasil)?
Thiago Prado: Yamandú Orsi, atual presidente do Uruguai, foi apontado por algumas pessoas que ouvimos como uma dessas lideranças. Ele chegou ao poder apoiado por Pepe Mujica, e, segundo nos disseram, faz jus à indicação. Gustavo Petro, da Colômbia, me chamou muita atenção numa resposta que deu a Trump no início do ano nas redes sociais, diante do anúncio das taxações. No Brasil, temos Guilherme Boulos, Érika Hilton e João Campos, que parecem vir se tornando uma possível via de união.
JL Bruno: Aqui no Brasil, apesar de termos alguns nomes despontando no cenário, não vislumbro, dentre as novas lideranças, alguém que seja capaz de se comparar com Pepe Mujica.
Lígia Francilino: Ainda que tenhamos nomes interessantes ascendendo no horizonte, tanto no Brasil quanto em outros países da região, a fragilidade da nossa democracia não me permite pensar em uma liderança capaz de comunicar com o povo de forma contundente. Me ocorre que Marielle poderia ter se tornado essa voz, mas foi silenciada antes, lamentavelmente.
Jéssica Fulganio: Vejo algumas sementes brotando, sim — mas nenhuma com a densidade simbólica e histórica do Pepe. No entanto, a eleição de Yamandú Orsi no Uruguai tem um peso político e simbólico enorme. Ele não é apenas o herdeiro político de Mujica, é também o primeiro presidente da Frente Amplio vindo do interior do país, de Canelones, o que representa uma ampliação real da base popular da esquerda uruguaia — tanto geográfica quanto socialmente.
Para a Frente Amplio, sua vitória é vista como uma oportunidade concreta de renovação sem ruptura. Orsi carrega a mística do Pepe, mas também traz uma linguagem mais pragmática e contemporânea, o que tem ajudado a dialogar com setores mais amplos da sociedade — especialmente com juventudes e trabalhadores que se afastaram da política institucional durante os anos do governo de Lacalle Pou.
É cedo para dizer se ele conseguirá construir um legado próprio, mas o simbolismo de sua eleição — um professor de ensino médio, filho de trabalhadores, prefeito que foi às ruas com o povo — é profundamente representativo. Ele nos lembra que ainda é possível fazer política com os pés no barro e os olhos no horizonte.
Gustavo Ferreira: Sim, eu vislumbro — e preciso vislumbrar — novas lideranças na esquerda, não como salvadores ungidos, mas como corpos plurais e insurgentes, que nascem das lutas cotidianas e dos territórios onde a dor e a beleza caminham juntas. Vejo, no Uruguai, no Brasil e em tantos cantos do mundo, vozes que antes foram silenciadas: pessoas com deficiência que transformam o capacitismo em potência política; corpos trans, não binários, gordos, racializados, dissidentes, que desafiam as normas e reconfiguram o que entendemos por poder; mulheres negras e indígenas que trazem a força da ancestralidade; juventudes periféricas que fazem da arte e da coletividade uma resposta ao abandono.
Essas lideranças não querem apenas ocupar espaços, mas transformar estruturas — e eu me reconheço nesse movimento.
Mais do que nomes, eu tenho esperança, e isso pode ser utopia da minha parte, mas sempre penso numa multidão viva, diversa e afetiva, que acredita na política como território de cuidado, justiça e reinvenção.
Fórum - Qual foi o impacto de acompanhar o velório de Pepe Mujica?
Thiago Prado: Foram cerca de 14km de cortejo. Vimos pessoas de diversas idades, gente de terno e gravata, operários, a classe média nas ruas, nas varandas, jovens, idosos. Parecia haver um encontro de toda a sociedade uruguaia ali por aquelas ruas, unida por um ideal.
JL Bruno: Pudemos sentir o espírito uruguaio. Existia um respeito entre as pessoas, não somente pelo ato em si. Do começo ao fim, eles demonstraram a força que Pepe Mujica deixou como legado. Sentíamos um propósito de união.
SERVIÇO:
Pré-estreia "Hasta Siempe, Pepe Mujica"
Onde: Al Janiah Rua Rui Barbosa, 268 - Bela Vista, São Paulo/SP
Entrada Gratuita
Quando: Sábado (21/6)
Horário: 17h
Após a exibição do filme, haverá uma conversa com a equipe produtora