Cerca de 460 pessoas se reuniram no último sábado (21) para participar da festa junina organizada pelo Conselho dos Cidadãos Brasileiros de Pequim, em parceria com as empresas chinesas OTH e Action Bar. Assim como na edição anterior, todos os ingressos se esgotaram rapidamente. Há expectativa de que, no próximo ano, o evento seja realizado em um local maior.
Com o objetivo de promover a cultura junina e os produtos típicos do Brasil, os ingressos deste ano incluíram degustação gratuita de café brasileiro e cupons para participar de brincadeiras tradicionais, como a corrida do saco, a pescaria e a argola.
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Aproveitando a popularidade das capivaras na China, o evento incorporou o animal em trajes caipiras na divulgação e criou uma prenda especial para os vencedores das brincadeiras: a “caipivara”, uma capivara de pelúcia com chapéu de palha.
Festa Junina e as festas tradicionais chinesas
Assim como a maioria das festas tradicionais chinesas, a festa junina tem origem em antigas tradições populares profundamente ligadas à agricultura. Sendo países que só recentemente se urbanizaram, Brasil e China têm em comum um passado profundamente ligado ao ambiente rural.
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Há milênios, tanto os europeus quanto os chineses, percebendo as estações do ano e os efeitos de fenômenos astronômicos na agricultura, começaram a desenvolver tradições culturais ligadas a datas marcantes, como solstícios e equinócios.
Na Europa, antigas festas pagãs envolviam dançar ao redor de uma fogueira, como forma de lembrar aos desuses que a temperatura estaria muito quente (solstício de verão) ou muito fria (solstício de inverno).
Quando a Europa se converteu ao cristianismo, essas tradições, já profundamente arraigadas à cultura popular, foram cristianizadas, com as celebrações dos solstícios sendo associadas ao Natal e ao dia de São João.
Introduzida no Brasil pelos portugueses, a festa de São João era uma das raras ocasiões em que a população rural ia para a cidade ouvir missa e se confraternizar. Com o tempo, isso deu origem a uma tradição que transformou a festa religiosa em uma celebração da cultura caipira brasileira.
Na China, a observação astronômica levou à elaboração dos 24 períodos solares, um conjunto de saberes que relaciona cada quinzena do ano a um período propício a certas atividades agrícolas, como plantio, crescimento dos grãos e colheita, e útil para prever períodos de frio e calor, chuva e seca.
As principais festas populares chinesas, como o Ano Novo Chinês, o Qingming, a festa do Barco do Dragão e o Festival de Meio-Outono, estão ligadas aos momentos mais importantes deste ciclo de períodos solares.
Celebrada no meio do inverno brasileiro, a Festa Junina tem semelhanças com as celebrações do Ano Novo Chinês, que também acontecem no frio. Além de bombinhas e fogos de artifício, as duas festas têm em comum a semelhança entre as lanternas chinesas e os balões juninos brasileiros.
Após o Ano Novo Chinês, as feiras do templo (miaohui) costumam ter barracas vendendo comida, apresentações de música e dança, e jogos e brincadeiras semelhantes aos que temos nas festas juninas brasileiras, inclusive as brincadeiras das argolas e da pescaria, que são muito populares no país asiático.
A Festa de Meio-Outono anuncia a queda de temperatura que antecede o inverno e celebra a última colheita do ano. Nesse sentido, podemos ver na relação com o campo uma semelhança com a festa junina brasileira.
Essa semelhança não é mera coincidência, já que muitos elementos da cultura chinesa se popularizaram no Brasil colonial, conforme apontam os estudos pioneiros de Gilberto Freyre sobre o tema, bem como os de outros pesquisadores que vieram depois, como José Roberto Teixeira Leite.
E precisamos falar também de Guimarães Rosa, que em seu romance Grande Sertão: Veredas colocou um chinês entre os jagunços do bando de Joca Ramiro, como se reivindicasse, com isso, o reconhecimento da contribuição chinesa para a cultura sertaneja brasileira. Considerando a extensa pesquisa de campo feita para este livro, é bem provável que o escritor tenha conhecido interessantes relatos sobre chineses no interior do Brasil.
Quadrilha, forró e comidas típicas
Outra coincidência (ou não?) entre a festa junina e uma festa tradicional chinesa tem a ver com a preocupação das comunidades rurais com animais peçonhentos. Na dança da quadrilha, por exemplo, os dançarinos dão meia volta ao encontrar uma cobra.
Já a festa chinesa do Barco do Dragão, que coincide com o pico de atividade de aranhas, escorpiões e cobras, está ligada a tradições como prender um ramo de ervas aromáticas às portas das casas e andar com um saquinho aromático pendurado ao pescoço para afastar esses animais.
Mas a semelhança termina por aí, já que a quadrilha tem origem na quadrille, dança aristocrática francesa trazida para o Brasil no início do século XIX pela corte imperial portuguesa, que a dançava em salões. Aos poucos a dança se popularizou e foi sendo abrasileirada, incorporando elementos rurais e firmando-se como uma tradição junina.
Tanto na edição do ano passado como na deste ano, a quadrilha foi um grande sucesso, com participação entusiasmada dos presentes. Mas há um detalhe cultural interessante: enquanto no Brasil homens e mulheres desconhecidos aproveitam a dança para se conhecer, mulheres chinesas interessadas na dança geralmente formam par com outra mulher, o que revela uma importante diferença entre os dois povos nas formas de interação social.
O forró, comum nas festas juninas brasileiras, especialmente nas do nordeste, também fez sucesso entre o público presente.
“Aquele forrozinho fez eu me sentir em casa”, relatou Nara Arruda, uma jovem brasileira que está na China a passeio e ficou sabendo da festa por meio de amigos que moram no país.
Visando promover a integração cultural entre Brasil e China, o Action Bar, que sediou o evento, ofereceu aos presentes alguns petiscos comuns na China, inclusive amendoim e espetinho de churrasco, que evidenciam semelhanças culturais entre os dois países.
O restaurante brasileiro Latina trouxe para o evento um cardápio especial que inclui dois lanches tipicamente brasileiros, sanduíche de picanha e sanduíche de linguiça; o tradicional milho verde, típico das festas juninas e popular na China; e porções de coxinha e pastel, para promover os salgados brasileiros. Já o cardápio de doces foi tipicamente junino, com bolo de coco, canjica, curau e cocada.
A dificuldade de se encontrar determinados produtos tipicamente brasileiros na China inviabiliza a oferta de alguns pratos juninos ou impõe a necessidade de adaptações, enquanto a existência de poucas empresas do ramo de restaurantes e buffet oferecendo comida brasileira em Pequim dificulta a oferta de maior diversidade de pratos.
Tal constatação evidencia a importância de eventos como esse, que popularizam a cultura e os produtos típicos do Brasil, na criação de oportunidades para que mais produtos brasileiros se popularizem no país asiático.
Adaptações ao verão chinês
O dia da festa junina também marcou o início de um dos mais quentes períodos solares do calendário tradicional chinês, com temperaturas acima de 36°C previstas para quase todos os dias desta semana.
As temperaturas dessa época do ano em Pequim inviablizam o consumo de bebidas tradicionais das festas juninas, como quentão e vinho quente, que servem para esquentar o corpo no inverno brasileiro, e favorecem bebidas típicas do verão, como a caipirinha.
Fogueira, fogos de artifício, bombinhas e balões, elementos populares das festas brasileiras, também não puderam estar presentes na festa, tanto por conta da rígida legislação da cidade quanto a controle de poluição e prevenção a incêndios quanto pela inconveniência de se fazer fogo num dia quente de verão. Por enquanto tais elementos permanecem ausentes da festa, mas em futuras edições talvez seja possível representá-los de outra forma.
Já a decoração da festa foi tipicamente junina, e nesse ponto temos outra semelhança interessante entre China e Brasil: as bandeirinhas coloridas, típicas dessas festas, também são comuns na Ásia.
Segundo estudiosos, as bandeirinhas de festa junina se originam de uma antiga tradição portuguesa de se decorar com retalhos coloridos os locais de grandes festas religiosas. No Brasil, as bandeirinhas, originalmente de tecido, passaram a ser feitas de papel.
Já na Ásia, bandeirolas coloridas são feitas de tecido e usadas na decoração de templos e festas tradicionais. Também existe a tradição das bandeiras de oração no budismo tibetano, que consiste em pendurar bandeirolas para que as preces escritas sobre elas sejam levadas pelo vento.
Apesar das semelhanças das bandeirolas asiáticas com as bandeirinhas brasileiras, não existem indícios de uma relação histórica direta. A semelhança parece ser fruto do costume universal de se preencher espaços com cores para enfeitar o lugar.
Ainda assim, é curioso notar que, tanto na China como no Brasil, essa tradição tem origens e simbologias que remetem à religião e à cultura popular, além de originalmente ser uma forma de se aproveitar retalhos para criar um ambiente festivo.
Mas há também uma diferença essencial entre essas duas tradições: enquanto na China as bandeirolas, especialmente as de cor vermelha, servem para atrair coisas boas e repelir as más, a diversidade de cores das bandeirinhas de festa junina representa fartura.
Incentivo às trocas culturais do Brasil com outros países
A iniciativa do Conselho dos Cidadãos Brasileiros de Pequim de criar uma festa junina pública anual na cidade mostrou-se promissora para integrar a comunidade brasileira e promover o intercâmbio cultural entre Brasil e China.
Não menos importante é o papel da festa junina em divulgar aspectos da cultura brasileira pouco conhecidos no exterior, mostrando que o Brasil tem uma cultura muito rica e diversa, que vai muito além do samba, do futebol e do churrasco.
“Fiquei impressionada com o ambiente alegre da festa, experimentei comes e bebes tradicionais do Brasil, estavam uma delícia. Um dos momentos mais interessantes foi a quadrilha, que pude ver e também participar. Além disso, foi uma oportunidade para fazer novas amizades com brasileiros e chineses”, declarou a jovem vietnamita Mung Bui.
A festa também foi especial para Zhang Chengcheng (Angela Zhang), a única chinesa que trabalhou como voluntária na organização do evento.
“A festa junina foi uma experiência incrível e uma excelente vitrine para a cultura brasileira. Sinto-me muito feliz e honrada por ter contribuído para seu sucesso, indo além da participação: fui uma ponte no intercâmbio cultural, ajudando mais chineses a descobrir o Brasil e se encantar. Mal posso esperar para participar das preparações e celebrações do ano Cultural Brasil-China”.
Presente no evento, João Batista Magalhães, ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Pequim, inaugurou a festa com um breve discurso no qual elogiou a iniciativa do Conselho de organizar o evento, ressaltando a importância de se aprofundar os intercâmbios culturais entre Brasil e China.
“Agradecemos o Conselho de Cidadãos por fazer coisas desse tipo, nós apoiamos especialmente esse tipo de evento para difundir a cultura brasileira”, afirmou João.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum