CRÔNICA

Produtividade – Por Luis Cosme Pinto

Rodrigo se arrisca sobre duas rodas para servir quem não quer tirar as pantufas

Créditos: Prefeitura de Curitiba
Escrito en OPINIÃO el

- Eu sentei o dedo com vontade no interfone lá do prédio. Fiz igualzinho no trânsito. O sem noção para na tua frente, o verde acende e ele lá no celular. Aí, é biiiiiiii!!! Biiiiiii!!! Biiiiii!!! Sei que é errado, mas se não buzino o que acontece?

- Não sei.

- Com ele nada. Tá dentro do carro, ouvindo música, digitando, ar condicionado. Já eu, perco tempo. Meu dinheiro vai embora. A gente trabalha por entrega, tá ligado?

- Como assim?

- Quanto mais rápido o frete, mais lucrativo é. Sabe o nome disso?

- Não.

- Chama produtividade. Muita entrega em pouco tempo é igual a mais dinheiro no fim do dia, o encarregado me explicou. Eu trabalho por produtividade. Adoro essa palavra: produtividade.

- Isso também não é exploração?

- Daqui a pouco a gente fala disso, grande. (Rodrigo chama todos de grande e às vezes de senhor) Antes deixa eu te contar o que aconteceu lá no prédio. Na real, eu toquei o interfone com ódio.

- Por quê?

- Noite zoada, um monte de pedido, temporal dos infernos. Eu encosto a moto ensopado e peço pro porteiro receber a encomenda.

- E aí?

- Ele diz que não pode sair da guarita e manda tocar no apartamento. Toco, toco e nada. Até que depois de um tempo, uma voz de sono diz: “Sobe aí.”

- E você?

- Disse que eu não podia e pedi que ele descesse.

- E ele?

- Demorou mais um monte, depois avisou: “tô descendo.”

- Como foi?

- Me aparece um cara de uns 40 anos, pijama de bolinhas, arrastando as pantufas e mexendo no celular. De repente, tira o fone de ouvido e dá um berro: “Vai tirar o pai da forca, véio? Quer destruir o interfone?” Que susto! Quase deixei cair a comida japonesa. Ele gritou mais.

- Você tá aqui para entregar a comida que eu mandei trazer ou veio fazer escândalo?

- O senhor demorou a descer...

- Senhor, muito bem. É assim que eu gosto. Presta atenção, eu demoro o tempo que eu quiser. Tô pagando. Me dá logo esse troço e aprende a esperar com educação. Da próxima vez te denuncio.

- (Rodrigo fingiu que não ouviu) O senhor vai pagar com cartão?

- (Com riso cínico) Tô pensando...

- Assim, vou ter que cancelar a entrega.

- (Bufando) Toma aqui o cartão, aproxima logo. Vai, vai, some daqui.

- É sempre assim a rotina do entregador?

- Não, tem muita gente legal, bem educada e generosa.

-  Como é?

- Pessoas que perguntam o seu nome, cumprimentam, se desculpam quando atrasam. Muitas dão gorjeta. Outro dia uma senhora me ofereceu um chocolate. Tem uma freguesa de Pinheiros, que já desce com um copo d’água, às vezes mate. Precisa ver que delícia.

- E a turma da entrega?

- Tudo irmão. Se fura um pneu, já chega uma galera pra ajudar, o mesmo quando o tanque seca.

- E a produtividade como fica?

- A gente é mano, depois sai a trilhão e recupera o tempo. Desde a pandemia tá sobrando serviço. O povo quer tudo em casa, na mão. É nóis, entendeu?

- Não.

- É nóis que vai fazer o trampo. Teve sábado que eu fiz mais de 30 entregas: compra de mercado, farmácia, lanche, jantar. Em cada uma, ganho dez reais. Faz as contas.

- Baita produtividade.

- Sabia que o senhor tinha gostado.

Dez da noite. O entregador Rodrigo Fernandes, 24 anos, três tombos sem gravidade, 14 horas de trabalho por dia sem carteira assinada e nenhum direito trabalhista, aguarda na fila de uma lanchonete o pedido que fez para ele mesmo. Terminou o trabalho mais cedo porque vai jantar em casa. Foi ali, na fila, que começamos a conversar. Já com alguma intimidade, eu pergunto.

- Você não pede delivery?

- Não, motoqueiro não aguenta esperar (risos). Colo na lanchonete e peço pra viagem. Que nem aqui. Vou comer esse pastel rapidinho e levar uma pizza pra família.

- Você já tem família?

- Mulher e dois meninos. Olha aqui a foto. Tarcísio com 3 e Victor com 2.

- Lindos. Parabéns. Obrigado pela conversa. Vou indo.

- Pô ia te contar como começou essa história da família...

- Oba, quero ouvir.

(Continua na semana que vem)

*Dedico esta crônica ao melhor entregador do Brasil, Guilherme Jesus. Ele me ajudou com sugestões e histórias do mundo dos motoboys.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da Kotter.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.