Opinião

As boas ações morreram de overdose de autopromoção – Por Washington Araújo

Entre guerras, epidemias e cinismo político, só a intenção pura — desprovida de agenda oculta — sustenta médicos, voluntários e cidadãos comuns como eu e você, na complicada e urgente tarefa de salvar vidas

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Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.
As boas ações morreram de overdose de autopromoção – Por Washington Araújo

Na vastidão dos atos humanos, a intenção é a bússola que distingue o gesto autêntico do cálculo utilitário. A história política e filosófica repete a lição: o que dá densidade a uma ação não é sua aparência, mas a motivação que a sustenta. Hannah Arendt, ao refletir sobre a banalidade do mal, mostrou como é possível que pessoas comuns pratiquem atrocidades apenas porque deixaram de pensar sobre o sentido de suas ações. Para ela, a grande questão não era a monstruosidade dos atos, mas a ausência de uma intenção ética. Quando a intenção é vazia, o resultado pode ser devastador.

Simone Weil, filósofa e militante dos direitos humanos, escreveu que a atenção pura é uma forma de oração. Essa atenção é inseparável da intenção: ver o outro não como objeto de uso, mas como um ser sagrado. Na sua vida breve e intensa, Weil recusou o conforto e foi ao encontro dos operários, dos camponeses, dos exilados. Sua lição permanece: a intenção pura é sempre voltada para fora, em direção ao outro, e nunca para a engrandecimento de si mesma.

Já Viktor Frankl, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, compreendeu talvez como ninguém a diferença entre viver por uma meta utilitária e viver a partir de uma intenção significativa. Ao observar companheiros de prisão, ele notou que os que encontravam sentido em pequenos gestos de dignidade — compartilhar o último pedaço de pão, consolar um desconhecido — eram os que conseguiam resistir à desumanização. Para Frankl, a intenção de servir, de se manter íntegro diante do absurdo, era força capaz de sustentar a vida quando tudo o mais desmoronava.

Esses três pensadores ajudam a compreender por que a intenção pura é hoje uma virtude de sobrevivência. Ela está presente quando médicos recém-formados deixam a comodidade de clínicas em capitais europeias para se juntar aos Médicos Sem Fronteiras na África ou no Oriente Médio. Ali, sob calor extremo ou em hospitais improvisados, a intenção sincera não é retórica: é vacina, bisturi, anestesia contra a dor coletiva. A motivação não é o prestígio acadêmico nem a remuneração, mas o imperativo ético de salvar vidas.

O mesmo ocorre na Cruz Vermelha Internacional, onde homens e mulheres atravessam fronteiras incendiadas pela guerra para oferecer água, alimentos, abrigo. São profissionais que poderiam seguir carreiras estáveis, mas escolhem a rota da vulnerabilidade, da incerteza e do risco. É a intenção pura que os move: consertar, ainda que parcialmente, aquilo que os poderosos do mundo deixaram ruir. Não há espetáculo, há apenas ação concreta.

Esses exemplos mostram que a intenção pura não é virtude abstrata. É força prática que gera confiança, porque se traduz em atos que não precisam de propaganda. O olhar de uma criança vacinada, o idoso socorrido em meio a escombros, o mutilado que recebe uma prótese — eis a linguagem silenciosa da pureza de intenções.

Em contraste, vemos diariamente a perversão da intenção: governantes que transformam tragédias em palanque, celebridades que convertem caridade em marketing, empresas que fazem da solidariedade apenas fachada para lucrar. Quando a intenção é corrompida, até o gesto útil se converte em cinismo.

A pureza de intenções exige também responsabilidade pessoal. Não é terceirizar a culpa: “o governo falhou”, “a elite é culpada”. É perguntar-se: “O que posso fazer eu, aqui e agora, para ser parte da solução?”. Esse deslocamento de foco é revolucionário. Arendt lembrava que a política verdadeira nasce quando indivíduos assumem responsabilidade pela esfera comum. Weil dizia que o maior crime é negar-se a ver a dor do outro. Frankl afirmava que a vida só se sustenta quando encontra um sentido que transcende o ego.

Viver com intenções puras é recusar o cinismo como método, é insurgir-se contra a indiferença. Não é perfeição, mas compromisso. Em tempos de ruído digital e autopromoção incessante, a intenção sincera é talvez o último território de resistência. 

E que, quando alguém decide agir por amor à verdade e ao próximo, sem agenda oculta, o mundo, por um instante que seja, respira melhor.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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