O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, somos nós, por Washington Araújo
Entre o poder e o medo, o novo filme de Kleber Mendonça transforma o esquecimento em personagem principal — e o público em testemunha silenciosa.
Há filmes que entretêm, outros que encantam — e há os que ferem. O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, pertence a esta última categoria: a dos filmes que abrem janelas em quartos fechados há décadas, deixando que entre a luz e que se revele o pó acumulado do silêncio. Estreia em novembro no Brasil, após conquistar o júri e a crítica internacional em Cannes, onde arrebatou prêmios de Melhor Diretor, Melhor Ator e o FIPRESCI. Mais do que aplaudido, foi compreendido. O mundo parece ter reconhecido, no cinema brasileiro, algo que vai além da estética: um gesto político, uma súplica ética, uma convocação à memória.
Wagner Moura, de volta à língua portuguesa, mostra-se em estado de urgência. De Capitão Nascimento a Pablo Escobar, sua trajetória foi atravessada por figuras que personificam a violência e o poder. Agora, o ator empresta corpo, voz e alma a um personagem que habita o subterrâneo da nação: o espião involuntário, o homem que vê demais, o sobrevivente que carrega as cicatrizes de um país que insiste em fingir que não as tem. Moura parece compreender que, no Brasil, atuar é também resistir — e que cada gesto no cinema é uma forma de reescrever a história.
Kleber Mendonça Filho, por sua vez, confirma-se como o cineasta que se recusa à neutralidade confortável. Desde O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, vem construindo uma filmografia que une a crítica social ao risco estético, sempre à margem do poder e no centro da lucidez. Em O Agente Secreto, o compromisso se repete: filmar não apenas um enredo, mas a memória coletiva de um país que tenta trancar sua própria consciência num porão escuro. Kleber entende que a câmera pode ser lanterna — e que filmar o Brasil é, inevitavelmente, filmar sua recusa em lembrar.
A escolha do filme para representar o país no Oscar é, nesse sentido, simbólica. Não se trata de buscar uma estatueta dourada, mas de reivindicar um lugar de fala histórica. O que o júri internacional viu foi um Brasil sem maquiagem, um cinema que não cede à nostalgia, mas que desnuda a persistência dos mecanismos de repressão, a herança do medo e o silêncio institucionalizado. O Agente Secreto fala do passado, mas o faz com o verbo do presente — e com o aviso de que a amnésia é uma forma sofisticada de ditadura.
O título não é mero artifício de roteiro. “Agente secreto” carrega em si a ambiguidade que move toda a narrativa: quem vigia e quem é vigiado? Quem silencia e quem resiste? Kleber desloca o olhar para esse território nebuloso, onde as fronteiras entre o poder e a insubmissão se confundem. É um filme que não se contenta em contar segredos: ele os devolve à superfície, como ossadas que o tempo tentou esconder.
Assistir a O Agente Secreto será, portanto, menos um ato de consumo cultural e mais um gesto político. O impacto do filme não se medirá pela bilheteria, mas pela inquietação que deixará em cada espectador. Ao sair da sala escura, o público talvez perceba que o verdadeiro protagonista não é o espião, nem o vilão, nem o Estado oculto — mas a própria sociedade, cúmplice e esquecida. O cinema, quando fiel à sua vocação, não consola: interroga.
Graciliano Ramos, que conheceu as celas e os interrogatórios, escreveu que “o medo é uma doença que corrói a gente por dentro”. Kleber Mendonça parece responder, quase um século depois: o cinema é um antídoto possível. Ele não cura a ferida — mas impede que cicatrize por esquecimento. A película se torna pele, e a projeção, um espelho onde o país se vê, se envergonha e talvez, um dia, se redima.
Em novembro, quando as luzes se apagarem e a tela se acender, O Agente Secreto não chegará apenas como mais uma estreia. Chegará como manifesto: contra o esquecimento que se disfarça de perdão, contra o revisionismo que finge inocência, contra o hábito de cair nos mesmos abismos com os olhos bem abertos. Será um lembrete de que recordar é resistir — e que a memória, por mais dolorosa, é o último reduto da liberdade.