O que o Brasil esquece ao celebrar a cultura do Halloween e ignorar Cosme e Damião
Por que as escolas preferem o “Dia das Bruxas” ao dia dos gêmeos que curam?
Quando as escolas ensinam o “Dia das Bruxas” e silenciam Cosme e Damião, o que está em jogo não é apenas uma decisão pedagógica, e sim a reafirmação de qual cultura merece ser lembrada. Entre o Dia de Cosme e Damião (27 de setembro) e o Dia das Crianças (12 de outubro), um mesmo gesto percorre ruas, terreiros e lares brasileiros: o de oferecer doces. Nas religiões afrobrasileiras, Cosme e Damião foram sincretizados com os Ìbejì, os gêmeos sagrados da tradição yorùbá, ou ainda com os erês, espíritos infantis que simbolizam pureza, alegria e o elo entre o mundo visível e o invisível.
No catolicismo popular, o doce é promessa e agradecimento; nos cultos afro, é oferenda aos orixás, que são considerados um alimento consagrado, um ato de fé e de comunhão com a comunidade. Como explica Marcel Mauss, oferecer algo é sempre mais do que doar: é um “fato social total”, que envolve economia, religião, afeto e magia. Dar o doce é perpetuar uma rede de reciprocidade entre pessoas e divindades, uma forma de manter o mundo em equilíbrio.
Mas, em tempos recentes, esse gesto de partilha tem enfrentado resistência e reinterpretação, especialmente por parte de setores neopentecostais, que o associam ao “mal”, temendo que as crianças se “contaminem espiritualmente” ao consumir esses doces. O sagrado africano tornou-se disputa simbólica de poder entre as religiões e, enquanto isso, as escolas permanecem em silêncio. E é justamente nesse ponto que trago algumas reflexões neste artigo: por que as mesmas escolas que reproduzem o Halloween com entusiasmo, festa estrangeira que também gira em torno do doce, da fantasia e do medo, preferem ignorar o caruru, Cosme e Damião e os Ìbejì?
O que se apaga quando se ensina sobre o Halloween e se esquece do Caruru?
O Halloween entrou nas escolas brasileiras pelas portas das aulas de inglês nos anos 1990, como ferramenta para ensinar língua e cultura anglófona. Rapidamente, ganhou status de festa moderna e global, com decorações, fantasias e concursos de abóboras. A celebração americana passou a ser tratada como “atividade pedagógica neutra”, enquanto manifestações genuinamente brasileiras, como os doces e o caruru de Cosme e Damião, o Dia do Folclore ou o Dia do Saci, foram reduzidas a curiosidades folclóricas. Como lembra o sociólogo Aníbal Quijano (2000), a colonialidade do poder faz com que países periféricos adotem o modelo cultural europeu ou norte-americano como sinônimo de civilização. A escola, nesse sentido, não é apenas um espaço de aprendizagem: é também um instrumento de legitimação simbólica. Ela define o que é “cultura universal” e o que é “crença local”. E nessa escala de valores, o que vem de fora continua sendo celebrado, enquanto o que nasce do povo é silenciado e marginalizado.
Em seu estudo Doces Santos, Renata Menezes (2016) demonstra que a entrega de doces nas festas de Cosme e Damião é um ato de fé e reciprocidade, que liga ruas, igrejas e terreiros. A partilha, aqui, é uma forma de oração coletiva, uma espiritualidade vivida na prática cotidiana. Entretanto, dentro das escolas, esse mesmo gesto é muitas vezes vetado sob o pretexto de manter a laicidade. Como observa Emerson Giumbelli (2002), a laicidade brasileira é seletiva: “tolera o presépio, mas teme o atabaque”. O medo de lidar com o sagrado afrobrasileiro gera o que chamo de pedagogia do esquecimento: uma neutralidade aparente que, na prática, reforça hierarquias raciais e religiosas. O paradoxo é evidente: enquanto crianças se fantasiam de bruxas personagens do imaginário europeu cristão, o Saci, os orixás e os voduns permanecem fora do currículo.
O que as crianças aprendem com Halloween?
Aprender sobre o Halloween é aprender muito mais do que vocabulário em inglês. É aprender que o estrangeiro é admirável, que o medo pode ser lúdico e que o consumo é parte natural da infância. Mas nas tradições africanas, a infância é sagrada. Os Ìbejì, gêmeos divinos, representam a dualidade, a alegria, a cura através da felicidade e o equilíbrio. Cada criança é, em essência, filha de Ìbejì, portadora de luz e vínculo com o invisível. Na cosmologia yorùbá, existe também a Ègbé Òrun, a comunidade celestial onde habitam seres e amigos espirituais, de onde cada um de nós vem antes de nascer. Cuidar das crianças é, portanto, honrar os laços do Òrun, manter viva a conexão entre mundos. Enquanto o Halloween ensina a barganha, "doce em troca da travessura", o caruru ensina a partilha: o doce como oferenda, como lembrança da infância espiritual que todos carregamos.
Por que as escolas preferem o “Dia das Bruxas” ao dia dos gêmeos que curam? Porque ainda pensam a cultura sob o olhar do colonizador. Seguimos presos a uma epistemologia eurocêntrica que define o saber legítimo como o saber branco e europeu. Enquanto o Halloween é visto como “intercâmbio cultural”, o caruru é considerado “religioso demais”. Mas toda cultura é religião de alguém; toda festa carrega um modo de ver o mundo. A filosofia presente no Candomblé e nas tradições ancestrais africanas são uma verdadeira escola de valores, um sistema de educação ancestral que transmite ética, respeito e sentido de pertencimento. Ignorar isso é negar às crianças brasileiras o direito de conhecer a pluralidade espiritual, social e cultural do seu próprio país.
Revalorizar Cosme e Damião não significa rejeitar o Halloween. Significa equilibrar as vozes. Se há espaço para bruxas, deve haver também para o Saci e para os gêmeos africanos yorubá. Se há fantasias de monstros, que haja também coroas de ervas, histórias de Iara, Curupira e cânticos para Ìbejì. O Dia das Crianças poderia ser celebrado nas escolas como um momento de reconhecimento das infâncias plurais, das culturas diversas e dos saberes comunitários. Convidar mães e pais de santo, griôs, artistas populares e contadores de histórias seria uma forma de ensinar a espiritualidade da infância, aquela que ri, oferece e compartilha. Talvez o que falte à escola brasileira não seja inglês, mas memória. Enquanto o Halloween ensina o medo do escuro, Cosme e Damião ensinam o valor da partilha, das curas e das promessas, e que o invisível é caridoso e generoso quando se tem fé. Há uma escolha simbólica aqui: que infância queremos formar, a que consome ou a que compartilha?
Fontes:
Dias, J. C. T. (2014). Doce de Cosme e Damião: considerações sobre um caso de sincretismo. Revista de Estudos da Religião, 14(1).
Giumbelli, E. (2002). O fim da religião? Rio de Janeiro: UFRJ.Laraia, R. B. (2001). Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar.
Menezes, R. (2016). Doces santos: reciprocidade, relações inter-religiosas e fluxos urbanos em torno à devoção a Cosme e Damião. Ponto Urbe, 19.
Quijano, A. (2000). Colonialidade do poder e classificação social. CLACSO.
Schwarcz, L. M. (2001). O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.