Vivendo o dessilenciamento: quando todo o corpo é voz!

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(por Jenyffer Nascimento) O imaginário construído sobre as mulheres pobres, periféricas, suburbanas, faveladas e marginalizadas perversamente sempre nos coloca em posições desprivilegiadas, de opressão e submissão. Sai década, entra década, permanecemos marcadas pelo estigma da violência, da fragilidade e da objetificação dos nossos corpos. Somos retratadas de forma distorcida na televisão, no cinema, nas narrativas literárias, nos papos de boteco, enfim, em quase todos os lugares. Quase nunca temos nossa inteligência e nossas trajetórias consideradas, olhadas com admiração, respeito e valor. Efetivamente, não nos enxergam no protagonismo de nossas ações, dos passos e caminhadas firmadas. E mesmo quando isso acontece, querem apagar nossa identidade, como se a nossa origem, a cor da nossa pele não fossem um marcador fundamental dessa nossa construção. Mas de fato, quem são as mulheres da quebrada? O que querem? O que fazem e o que pensam esses corpos invisíveis, que recheiam as estatísticas? Quem poderia responder a essas perguntas? Seriam os historiadores, sociólogos, geógrafos, antropólogos e seus modelos teóricos? Cabe dizer, as mazelas as quais estamos submetidas não deixaram de existir, muito pelo contrário. No geral, somos nascidas e criadas vivenciando a hostilidade do machismo e do racismo de nossos pais, irmãos, namorados, professores e amigos. Mas as mordaças que calaram nossas avós, mães, tias, estão sendo diariamente arrancadas, uma a uma, incansavelmente! E, a cada mordaça arrancada, um grito de 10, 20 e 30 anos passa a ecoar no tempo e no espaço e faz morada em nós. Não somos mais as mesmas e não tínhamos como ser, depois que nossas mães passaram a vida inteira limpando chão da patroa, depois de passar anos nas filas das portas de cadeias, depois de chorar as mortes dos filhos assassinados, depois de todas as proibições, depois de agredidas, estupradas, abandonadas depois da mutilação da própria alma. Se escreve e se inscreve todos os dias em cada beco, rua, viela, encruza, morro, descampado, escadão, ladeira, lentamente o nosso dessilenciamento. Você pode ouvir? Você pode nos ouvir? Agora é que são elas? Faz é tempo que são elas, mas os menos dotados de sensibilidade, afetados pela cegueira do machismo e do racismo só começaram a perceber agora. “Ô abre alas que eu quero passar...” São elas buscando os filhos na escola, indo pagar as contas. São elas (ainda!) a cuidar da casa, entre um corre e outro. São elas no caminhar apressado para a próxima reunião de militância, escrevendo projetos, livros, indo para o ensaio do próximo show. São elas encenando dores, cores e valores. São elas pintando o 7, o 14, o 28, pintando muros, telas, painéis. São elas costurando colchas de retalhos a figurinos fashionistas. São elas dominando programação HTML. São elas no baile funk descendo até o chão, são elas na universidade, na graduação, mestrado e doutorado (sim!). São elas com seus cabelos crespos, cacheados, coloridos pelas ruas, ostentado beleza e autoestima no enfrentamento diário. São elas na auto-organização das próprias iniciativas. São elas arrasando no batom vermelho. São elas dando a letra nos blogs, revistas, documentários, salas de aula e mesas de debate. São elas na cuíca, repique, pandeiro, baixo e contrabaixo. São elas no olho no olho, parindo, sonhando, gozando. São elas jogando sinuca, pedindo a breja no bar depois do expediente. São elas construindo seu próprio feminismo. São elas cruzando a cidade do Pq. Santo Antônio ao Jd. Brasil, do Horizonte Azul a Parada de Taipas. São elas nuas, cruas e reais. Não é possível nos enquadrar e nos colocar em uma caixa como se fôssemos todas iguais. Nos construímos na pluralidade, do arroz com feijão ao cuscuz com carne seca. Temos um norte comum. Descobrimos a força que nos habita e já não podemos voltar atrás; mesmo quando nos dizem não e forjam barricadas, o front nos aguarda. Pelo legado deixado por nossas mulheres ancestrais, as que vieram antes de nós e não tiveram seu trabalho reconhecido e propagado como deveria. Hoje, muitas de nós decidimos que a legitimidade de ser quem somos e fazer o que fazemos como mulheres periféricas só a nós pertence. Sinto cheiro de bolo queimado ainda pairando no ar. Passou da hora. Não podem mais falar por nós, em nome de nós. É preciso romper com velho e olhar o novo. É preciso que vocês nos vejam e conheçam a vivência e o trabalho das contemporâneas periféricas, Capulanas Cia de Arte Negra, Coletivo Audácia, Herdeiras de Aquatune, Levante Mulher, Mães de Maio, Coletivo Rosas – Fala Guerreira, Mulheres na Luta, Alessandra Tavares (professora), Sheila Signário (fotográfa), Alânia Cerqueira (articuladora cultural), Jessica Balbino (jornalista), Elizandra Souza, Tula Pilar (escritoras), Fernanda Coimbra e Paula da Paz (cantoras), Juliana dos Santos (atriz), Jessica Ipólito (militante feminista), Rosana (costureira), Dona Maria (fundadora da associação de moradores), Aline Gonçalves (pedagoga), Ana Musidora (performer), Arailda Carla (brincante e gestora social), Lisandra Borges (batuqueira), Dona Nice (mãe e trabalhadora) e tantas outras mulheres que por vezes estão ao seu lado. Há muito a se aprender conosco sobre amar, lutar, sonhar e resistir. A gente vem se agigantadando nesse cirandar. Numa rede de mulheres que se olham, se reconhecem, entoam ladainhas e buscam trazer as irmãs, primas, alunas, as novinhas, a juventude, as senhoras, as matriarcas. Tanta riqueza. Tanta beleza. Todo nosso corpo é voz. Você pode me ouvir? Você pode nos ouvir? Não à toa, periferia é substantivo feminino. Com licença Trotsky, mas é nessa perspectiva que inauguramos, à nossa maneira, a teoria da revolução permanente. Dessilenciando. *** Jenyffer Nascimento é poeta, autora de "Terra Fértil" (Editora Mjiba, 2014), ativista nos movimentos culturais da periferia paulistana. Moradora do Jd. Ibirapuera, mobiliza e é mobilizada pelo núcleo de cura e fortalecimento de mulheres negras e periféricas, da zona sul de SP.”