Cinco pontos da narrativa israelense sobre Gaza - Desmistificados

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Por Noura Erakat (The Nation)

Israel já matou quase 800 palestinos nos últimos 21 dias apenas na Faixa de Gaza; o massacre continua. A ONU estima que mais de 74% dos mortos são civis. Isto é de se esperar em uma população de 1.8 milhão onde o número de membros do Hamas é aproximadamente 15,000. Israel não nega que matou estes palestinos usando moderna tecnologia aérea e um arsenal de precisão, cortesia da única super potencia mundial. De fato, eles nem sequer negam que eles eram civis.

A máquina de propaganda israelense, entretanto, insiste que estes palestinos quiseram morrer ("cultura do mártir"), encenaram a própria morte ("mortos televisionáveis")  ou foram vitimas trágicas do uso de infraestrutura civil pelo Hamas para fins militares ("escudos humanos"). Em todas estas instâncias, a força militar está culpando as vitimas pela própria morte, os acusando de desvalorizarem a vida e atribuindo esse descaso à falência cultural. Na prática, Israel – juntamente com uma mídia acrítica que aceita sem questionar este discurso – desumaniza os palestinos, priva-os da sua vitimização e legitima flagrantes violações dos direitos humanos e violações legais.

Esta não é a primeira vez. As imagens horríveis de corpos decapitados de crianças e a inocência roubada na costa de Gaza são uma repetição terrível de agressão de Israel em Gaza em novembro de 2012, e no inverno de 2008-09. Não tão somente são as táticas militares as mesmas, mas também os esforços de relações publicas e os argumentos jurídicos deficientes que sustentam os ataques. Âncoras de grandes plataformas de informação estão aceitando, inexplicavelmente, estes argumentos como fatos.

Abaixo vou abordar cinco pontos de discussão recorrentes de Israel. Espero que isso se prove útil para os criadores de notícias.


1) Israel está exercendo o seu direito de auto-defesa.

Como potência ocupante da Faixa de Gaza, e dos Territórios Palestinos de modo mais amplo, Israel tem a obrigação e o dever de proteger os civis sob sua ocupação. Ele governa por autoridade militar e policial para manter a ordem, proteger a si mesma e os civis sob sua ocupação. Não pode simultaneamente ocupar o território, usurpando os poderes de auto-governo que de outra forma pertencem aos palestinos, e declarar guerra contra eles. Estas politicas contraditórias (ocupar um território e declarar guerra sobre o mesmo) deixam a população palestina duplamente vulnerável.

As condições precárias e instáveis na Faixa de Gaza que os palestinos sofrem são de responsabilidade de Israel. Israel argumenta que pode invocar o direito de auto-defesa sob as leis internacionais definidas no Artigo 51 da Carta da ONU. A Corte Internacional de Justiça, entretanto, rejeita esta falsa interpretação legal no seu parecer de 2004. A CIJ explicou que um ataque armado que provocasse o Artigo 51 só é atribuível a um estado soberano, mas os ataques armados pelos palestinos emergiram de dentro do controle jurisdicional de Israel. Israel tem o direito de se defender de ataques de foguetes, mas tem de ser feito em acordo com as leis de ocupação e não outras leis de guerra. Leis de ocupação asseguram maior proteção para a população civil. As outras leis de guerra equilibram o vantagem militar e o sofrimento civil. O argumento de que "nenhum país iria tolerar ataques com foguetes a partir de um país vizinho" é tanto um desvio do assunto quanto não tem qualquer fundamento.

Israel nega aos palestinos o direito de governarem e protegerem a si mesmo, enquanto simultaneamente invoca o direito a auto-defesa. Isto é uma falácia e uma violação das leis internacionais, deliberadamente criada por Israel para escapar à responsabilidade.

2) Israel retirou-se de Gaza em 2005.
Israel argumenta que a ocupação da Faixa de Gaza acabou quando houve a 'retirada unilateral' de sua população de colonos em 2005. Depois disso declarou a Faixa de Gaza como “território hostil” e declarou guerra contra sua população. Nem o argumento quanto a afirmação são convincentes.
Apesar de remover 8,000 colonos e a infraestrutura militar que protegia sua presença ilegal, Israel manteve o controle efetivo da Faixa de Gaza e, portanto, continua a ser a potência ocupante, como definido pelo Artigo 47 nos Regulamentos de Haia. Até a data, Israel mantêm o controle do espaço aéreo, águas, esfera eletromagnética, registro populacional e o movimento de bens e pessoas no território.

Israel argumenta que a retirada de Gaza demonstra que o fim da ocupação não trará paz. Alguns foram mais longe e afirmaram que os palestinos desperdiçaram a oportunidade de construir o paraíso em vez de construírem um refúgio terrorista. Estes argumentos têm o objetivo de ofuscar a responsabilidade de Israel na Faixa de Gaza, assim como na Cisjordânia. Como o Primeiro-Ministro Netanyahu uma vez explicou, Israel deve assegurar de não “ter outra Gaza na Judeia e Samaria [...] Acho que agora o povo de Israel entende o que eu sempre digo: que não pode haver uma situação, sob qualquer acordo, em que nós abandonamos o controle de segurança do território a oeste do rio Jordão.”

Os palestinos ainda têm de experimentar um dia de auto-governo. Israel impôs um cerco à Faixa de Gaza quando o Hamas ganhou as eleições parlamentares em Janeiro de 2006, e apertou-o severamente  quando o Hamas derrotou a Fatah em Junho de 2007. O cerco criou uma “catástrofe humanitária” na Faixa de Gaza.
Os habitantes não terão acesso a água potável, eletricidade ou sequer conseguirão lidar com as necessidades medicas mais urgentes. A Organização Mundial da Saúde explica que a Faixa de Gaza será inabitável até 2020.
Não só Israel não terminou a ocupação, como também criou uma situação onde os palestinos não sobreviverão no longo prazo.

3) Esta operação israelense, entre outras, foi causada por um foguete de Gaza.
Israel afirma que esta e as outras guerras contra a população palestina, foi uma resposta aos lançamentos de foguetes. Evidências empíricas de 2008, 2012 e 2014 refutam esta afirmação. Primeiro, de acordo com o Ministério de Relações Exteriores de Israel, a grande redução de foguetes lançados vieram através de esforços diplomáticos ao invés de meios militares. Este gráfico demonstra a correlação entre os ataques militares israelenses na Faixa de Gaza e a atividade militar do Hamas. Os ataques de foguetes do Hamas aumentaram em resposta aos ataques militares israelenses diminuem em correlação a eles.
O cessar-fogo trouxe maior segurança à região.

Durante os 4 meses de negociações egípcias de cessar-fogo em 2008, militantes palestinos reduziram o número de foguetes a zero, ou de apenas um digito, a partir da Faixa de Gaza. Apesar desta relativa segurança e calma, Israel quebrou o cessar-fogo para começar a conhecida ofensiva aérea e terrestre que matou 1,400 palestinos em 21 dias. Em Novembro de 2012, o assassinato extrajudicial israelense de Ahmad Jabari, chefe da ala militar do Hamas em Gaza, enquanto este revisava os termos de uma solução diplomática, quebrou novamente o cessar-fogo e precedeu a ofensiva aérea que durou oito dias e que matou 132 palestinos.

Imediatamente, antes da mais recente operação israelense, os foguetes e morteiros do Hamas não ameaçaram Israel. Israel deliberadamente provocou esta guerra contra o Hamas.
Sem produzir o mínimo de evidência, acusou a facção politica de sequestrar e matar 3 colonos próximo à Hebron. Quatro semanas e quase 700 vidas depois, Israel ainda tem que apresentar qualquer evidência que demonstre o envolvimento do Hamas. Durante dez dias da Operação «Brother’s Keeper» na Cisjordânia, Israel prendeu aproximadamente 800 palestinos sem acusação ou julgamento, matou 9 civis e invadiu 1300 residências, prédios públicos e comerciais. Esta operação militar tinha como alvo os membros do Hamas soltos durante a troca de prisioneiros de Gilad Shalit, em 2011. São estas provocações de Israel que precipitam o lançamento de foguetes do Hamas os quais Israel afirmar não ter outra escolha, a não ser estas horríveis operações militares.

4) Israel evita baixas civis, mas o Hamas intenciona matar civis.

O Hamas tem uma tecnologia de armamento rude, e que carece de qualquer capacidade de mira. Como tal, os ataques de foguetes do Hamas, Ipso facto, violam o princípio da distinção, pois todos os seus ataques são indiscriminados. Isto não é contestado. Israel, entretanto, não seria mais tolerante com o Hamas se alvo fosse estritamente objetos militares, como temos visto ultimamente. Israel considera qualquer forma de resistência, armado ou de outro modo, ser ilegítimo.

Em contraste, Israel possui o décimo primeiro exercito mais poderoso no mundo, e certamente de longe o mais forte do Oriente Médio, é uma potência nuclear que não ratificou o Acordo de Não-Proliferação, e tem a tecnologia de armas precisas. Com o uso dos drones, F-16s e um arsenal de armamento de tecnologia moderna, Israel tem a habilidade de acertar indivíduos isolados e, portanto, de evitar baixas civis. Mas ao invés de evitá-los, Israel tem repetidamente acertado civis como parte das suas operações militares.

A Doutrina Dahiya é central para estas operações, e se refere aos ataques indiscriminados de Israel ao Líbano em 2006. O Maj. Gen. Gadi Eizenkot afirmou que a tática seria usada em outro lugar:

“O que aconteceu em Dahiya em Beirute durante 2006, irá acontecer em todas a vilas que dispararem contra Israel. […] Aplicaremos força desproporcional sobre essas e causaremos grandes danos e destruição nas mesmas. Do nosso ponto de vista, estas não são vilas de civis, mas bases militares.”
Israel realmente manteve a sua promessa. A Missão de Investigação da ONU para o conflito de Gaza em 2009, mais conhecida como Missão Goldstone, concluiu “a partir da revisão dos fatos em terreno que foram testemunhados pela mesma, o que foi descrito como a melhor estratégia [Doutrina Dahiya] aparenta ser o que realmente foi posto em prática.”

De acordo com  a Associação Nacional dos Advogados (National Lawyers Guild), Médicos pelos Direitos Humanos-Israel, Human Rights Watch e Amnistia Internacional, Israel atirou diretamente contra civis ou imprudentemente causou mortes civis durante a Operação «Chumbo Fundido».
Longe de evitar mortes civis, Israel considera-os como alvos legítimos.

5) Hamas esconde armas em casas, mesquitas e escolas e utiliza escudos-humanos.

Este é, sem dúvida, um dos argumentos mais traiçoeiros de Israel, pois culpa os palestinos pela sua própria morte e os priva da própria vitimização. Israel fez a mesma acusação na sua guerra contra o Líbano em 2006 e na sua guerra contra palestinos em 2008. Não obstante dos seus cartoons militares, Israel ainda tem que provar que o Hamas usou infraestrutura civil para guardar armamento militar. Nos dois casos onde o Hamas de fato guardou armas militares em escolas da UNRWA, as escolas estavam vazias. A UNRWA descobriu os foguetes e publicamente condenou a violação da sua santidade.

Organizações internacionais dos direitos humanos que investigaram estas acusações, determinaram que não são verdade. Atribuíram a grande quantidade de mortes na guerra do Líbano de 2006 aos ataques indiscriminados de Israel.
Human Rights Watch, nota que:

“A evidência descoberta pela investigação da Human Rights Watch em terreno refuta o argumento de Israel[…] encontramos forte evidência de que o Hezbollah guardou a maior parte dos foguetes em bunkers e instalações de armazenamento de armas localizados em campos inabitados e vales,  e na vasta maioria dos casos, soldados do Hezbollah saíram de áreas civis povoadas assim que a luta começou, e que ainda o Hezbollah disparou a vasta maioria dos seus foguetes de posições pré-preparadas, fora das vilas.”

De fato, apenas soldados israelenses usaram sistematicamente palestinos como escudos-humanos. Desde a incursão de Israel na Cisjordânia em 2002, o país tem usado palestinos como escudos-humanos ao amarrar jovens palestinos aos capôs de seus carros ou forçando os mesmos a entrarem em casas onde potencialmente poderia haver um militante escondido.

Mesmo assumindo que as acusações de Israel são plausíveis, a lei humanitária obriga Israel a evitar baixas civis que “seriam excessivas em relação à vantagem militar concreta e direta prevista”. Uma força beligerante deve verificar se civis ou a infraestrutura civil se qualificam como um objetivo militar. E que em caso de dúvida de, “se caso o objeto que normalmente dedicado a propósitos civis, como um lugar de adoração, uma casa ou outra habitação ou uma escola, está sendo usado para contribuição efetiva de ação militar, deve ser presumido que não está sendo usado.”

Ao longo de 3 semanas de operação militar, Israel demoliu 3,175 casas, ao menos uma dúzia delas com famílias ainda dentro; destruiu 5 hospitais e 6 clínicas; parcialmente danificou 64 mesquitas e 2 igrejas; parcialmente/completamente destruiu 8 ministérios governamentais; feriu 4,620; e matou mais de 700 palestinos. À vista de todos, estes números indicam violações flagrantes do direito humanitário por parte de Israel, estes que são crimes de guerra.

Além da contagem de corpos e das referência às leis, o que é um produto do poder, a pergunta a se fazer é, Qual o objetivo final de Israel? E se o Hamas e a Jihad Islâmica cavaram tuneis por baixo de toda a Faixa de Gaza - eles claramente não cavaram, mas vamos assumir que fizeram pelo bem da discussão. De acordo com a lógica de Israel, todos os 1.8 milhão de palestinos são, por isso, escudos-humanos por terem nascidos palestinos em Gaza. A solução será destruir os 360 km² da faixa de terra e esperar que o mundo que assiste também aceite esta perda catastrófica como um incidente. Isto só é possível se enquadrarmos e aceitarmos a desumanização da vida palestina.
Apesar do absurdo da proposta, é exatamente isto que a sociedade israelense está estimulando as lideranças militares a fazer.
Israel não pode bombardeá-los até a submissão, e certamente não pode bombardeá-los até a paz.

Tradução: Arabizando