E agora, Egito?

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Por Thomas Farran
Com a violenta repressão dos que se opõe ao golpe, e com a retórica inflamada da liderança da Irmandade Muçulmana, o Egito está em uma fase socialmente sem ponto de retorno. 
Independente da vertente política que se adota, ou do ponto de vista que lhe seja conveniente, não se pode escapar à objetividade sobre os eventos que se deram nessa última quarta-feira, e que desde então tem espaço no Egito todo. E o que aconteceu foi um massacre, e como escrito, pouco interessa a contextualização apologética que se dê para contra-argumentar.      Um massacre é um massacre, assim como um golpe é um golpe, e apesar de toda uma especificidade, o Egito não foge dessas regras.

            Como anteriormente escrevi, a Irmandade é vítima dos próprios erros apenas, e não há mais quem se culpar pela impopularidade de seu partido político, se não o próprio. A Irmandade, e como já era de se esperar, aproveitou da vaga de vácuo político para construir um aparato que lhe fosse conveniente. E tão logo começou a tomar formas de um modelo totalitarista, encontrou a oposição das ruas.
         Hoje o povo egípcio deixou de ser refém da Irmandade Muçulmana, e passou a ser refém de um antigo problema: o Conselho Superior das Forças Armadas (CSFA), e sua óbvia busca pela retomada do poder. E nisso, foram engenhosos e bem-sucedidos.
Conseguiram suceder onde a Irmandade falhou, e aproveitaram do fator iniciativa (a retirada de Mursi do poder) para reconquistar a confiança de uma boa parcela da sociedade egípcia, sobre tudo na região do Cairo. A partir desse ponto, as táticas em nada diferem: é uma guerra de narrativas, a absurda “Guerra contra o Terror” de al-Sisi, contra “o entreguismo ao Ocidente” de Badei.
           Enquanto se discutiam ideologias, 18 dos 25 governadores que assumiram os cargos tem laços militares, sendo que 9 são generais aposentados, foi recolocado em efetivo o Estado de Emergência, e Hosni Mubarak (o ditador deposto em 2011) será libertado, e as acusações retiradas. 
Um se esconde atrás da aparente (já lá vou) popularidade do golpe, outro se esconde atrás da legislação; ambos procuram legitimação para seus atos e nesse processo, que beira o kafkiano, morre o liberalismo egípcio e todos os seus sonhos para “pão, liberdade e justiça social” de uma revolução que já existiu.
Sim, as manifestações do dia 30 de Junho foram de grande apelo popular e, embora os números tenham sido grosseiramente exagerados, incluíram as mais variadas camadas e os mais variados contextos políticos. Isso até o envolvimento militar.
          Atrás dos que tem servido ao apologismo à violência sectária desencadeada pelos militares, seguem argumentos como “supressão do terrorismo”, e “a vontade popular”. Mas será que existem números, e factos em solo que suportem essas afirmativas?

Objetivamente, não. E explico.

          Primeiramente, foram os militares que pegaram boleia nos movimentos que pediam a resignação do então presidente Mursi, e não o contrário. Se tem alguma coisa que a ingerência militar trouxe à tona, foi como heterogêneos são tanto os movimentos que eram contra o presidente, quanto os que eram a favor. A ruptura do Tamarod com os demais movimentos inclusivistas retrata muito bem isso.
Mahmoud Badr, líder do Tamarod, fez questão de deixar muito claro o apoio total e incondicional à liderança militar e suas propostas, a partir desse momento a oposição começou a se desintegrar. Embora, até então, era discutível a intenção desse apoio aos militares, mais tarde esse apoio ganhou contornos de dependência.
      O fato do movimento Tamarod convocar “Comités Populares” de inteligência para colaborar com o exército (Shabbihah) e entregar opositores, e buscar apoio de monarquias autoritárias como Arábia Saudita, e Emirados Árabes Unidos, que catalisou essa ruptura.
Hoje, grupos e movimentos que estiveram à frente da briga pela democratização do país, são descartados como colaboracionistas, terroristas, simpatizantes, e qualquer outro rótulo. São frentes populares, como o «Movimento Jovem 6 de Abril» e o «Movimento Revolucionário Socialista», e personalidades como Hossam el-Hamalawy, Bassem Youssef, e o recém-demitido Mohamed el-Baradei que eram aliados dantes, e são os “traidores” de hoje. Essa é a ambiguidade política no país, que tem-se espalhado como uma doença.
E é justamente dessa ambiguidade que se valeram os militares, e seus apoiantes para criar o que seguramente tem sido uma eficiente máquina de propaganda doméstica.
     Desde as manifestações que precederam o dia 30, grandes meios internos de comunicação tem adotado uma postura de incitação sectária e divisiva. Criou-se uma redoma, e a fórmula é conhecida: ódio e medo.
           A máquina de propaganda nunca foi tão necessária, porque apesar das manifestações terem contado com a força popular, o golpe em si, não. 
           Um recente estudo independente realizado pelo Centro Egípcio de Estudos da Mídia e da Opinião Popular *, realizado durante todo o mês de Julho e a abranger o país todo, mostra que 69% das pessoas não apoia o golpe.
          A pesquisa é interessante não só porque contraria o mito veiculado, mas porque most ra a composição demográfica dos que apoiam o golpe, e dos que são contra, e que acaba por mudar todo o contexto da situação.
Exemplo: Dos 69% que são contra o golpe, apenas 39% se identificam com o Islão político em alguma de suas vertentes para além da Irmandade; 19% são apoiantes da Irmandade Muçulmana ou do seu ramo político; e 42% não se identificam com nenhum partido político, ou são profissionais liberais. Quase a totalidade se encontra distribuída nas regiões mais desiguais do país, como a região do Delta do Nilo.
Surpreendentemente, dos 25% que apoiam o golpe, 55% são apoiantes do regime de Mubarak ou funcionários públicos; 19% apoiam partidos de matriz liberalista-econômica; e apenas 6% tem ideologia social-liberal, ou de esquerda. Em compensação, a grande maioria desses 25% vivem na região do Cairo ou nas capitais das províncias. 
Uma das muitas interpretações que se faz dessa coletânea de dados, é para além da briga ideológica, tem havido uma briga de classes, o que por sua vez explicaria o comportamento dos grandes empresários e remanescentes do antigo regime (folool) e da grande mídia nos últimos meses. Não é necessário estudar a fundo o braço-de-ferro com os planos do FMI para os planos de recuperação econômica  e não são necessários muitos minutos ligados em canais como a OnTV, ou muitas páginas do «al-Masry al-Youm» para que se note que há algo definitivamente errado em como a informação tem sido tratada no Egito.
         É seguro afirmar que o conflito tem raiz econômica  tanto quanto sectária. E que ser “popular” não é argumento para justificar massacres, e mesmo se fosse, seria duvidoso e vazio.
           Por conseguinte, é a tecla da “luta contra o terrorismo” voltou a ser batida. Lembro bem do CSFA usar o mesmo argumento em 2011, após a queda de Mubarak, contra os mesmos manifestantes que agora os apoiam na Praça Tahrir.
Os movimentos islamitas são variados e de forma alguma são homogêneos  Então quando se fala de retórica incendiária por parte de algumas lideranças, não se pode ignorar que ao generalizar, são implicadas outras milhões de pessoas que não compartilham daquilo e/ou não se identificam com movimentos de natureza religiosa.
          Existem islamitas que apoiam os militares, existem islamitas que estão a formar frente com movimentos liberais, e existem autoridade religiosas que vão a público apelar pela não-violência.
          A atual onda de violência teve origem com a ação militar da quarta-feira (14), e a reação daqueles que se viram agredidos foi uma resposta irracional, e tão desprezível quanto. O princípio é básico, violência só resulta em mais violência. Este é um ciclo deplorável, cujo não resultam vencedores.
São altamente condenáveis atos como os incêndios em Igrejas e a violência contra os coptas, e os responsáveis devem responder. 
Dito isto, seria ingenuidade desconsiderar que existe o histórico do uso de agentes provocadores no M.O das Forças Armadas. São tão ou mais condenáveis a perseguição de jornalistas, atacar hospitais, mesquitas, concentrações de manifestantes, e as diversas violações humanitárias promovidas pelo SCFA e seus apoiantes.
         A falácia da “guerra contra o terror” e do banimento que tem sido discutido, da Irmandade Muçulmana do cenário egípcio não é algo novo, e fará parte de uma série de planos fracassados para a marginalização de movimentos na região. 

Saddam e EUA tentaram no Iraque; O Baath na Síria; Ben Ali na Tunísia; Pahlavi no Irão; URSS no Afeganistão; os militares na Argélia tentaram na década de 90; e a própria Irmandade no Egipto é a prova de que se marginalizados, esses movimentos sempre voltam. É uma saída irracional para um problema que não é político, mas social.

           Pessoas não são marginalizadas porque se juntam aos movimentos islamitas, mas sim se filiam a esses movimentos porque são marginalizas, e o sistema insiste em os falhar.
Marginalizar e criminalizar esses movimentos não só vai de encontro a todo valor liberal e democrático pregado durante a revolução, mas vai também apenas prolongar a instabilidade do país.
         Pintar em termos de branco-e-preto na tentativa de justificar o que tem acontecido, é baixo, desonesto e faz parte do problema.
          Enquanto a mentalidade das partes for a de dividir para conquistar, os egípcios forem peões de terceiros e o objetivo maior não for visto como bem comum, o Egito pode esperar dias negros, e um funeral do que poderia acontecer e não aconteceu.

A hora chegou, o estrago está feito. 

E agora, Egito?





( * ) O estudo, em sua forma original (árabe), seus dados e metodologia podem ser consultados clicando aqui.



Imagem: Grupo de muçulmanos protege Igreja enquanto cristãos rezam. (Créditos: RASSD)