Entre faraós e generais

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Por Thomas Farran
          Muito se comenta sobre os recentes eventos no Egipto, e no cenário 
atual a qualidade dos comentários e artigos mais levantam questões do que propriamente as respondem. O grande problema aqui, é que não se pode entender a parte sem se ter uma noção do todo.
            Voltemos atrás.
            O ponto de partida é as manifestações de 2011 as quais, no dia 11 de fevereiro daquele ano, levaram o governo a anunciar a saída de Mubarak, assumindo assim o poder o Conselho Supremo das Forças Armadas durante o período de 6 meses, quando seriam convocadas eleições gerais.
O facto da Irmandade Muçulmana ter sido a grande beneficiada com eleições em um relativamente curto espaço de tempo não foi surpresa, visto que eram das poucas opções que contavam com apoio sólido e uma estrutura organizada, para preencher o fenômeno de "vácuo de poder" existente. As eleições confirmaram o favoritismo, e juntamente com o partido safista al-Nour, formaram maioria tanto na Shura (Conselho Consultivo), como na Assembleia, e ao dia 30 de Junho de 2012, Mohammad Mursi assumia o cargo de Presidente, após eleito com 51.73% dos votos.
            Uma vez no poder, a administração de Mursi acabou por relevar fragilidades e imaturidade para lidar com a situação político-econômica corrente, e se marcou pela incompetência em encontrar com os desejos da ativa sociedade egípcia.
            Administração essa que falhou, por exemplo, em dialogar com os diversos campos da oposição, com sindicatos, e com o setor público. Falhou em intervir no Comité de Redacção Constitucional para se dirigir às desigualdades lá expostas e falhou com promessas como a revisão de acordos internacionais, e em controlar a interferência externa na economia, a fim de recupera-lá. Para lidar com a oposição, cada vez mais organizada, decidiu por usar ferramentas das quais foi vitima, e marginalizou liberais, esquerdistas, mulheres e coptas.
            O culminar dessas insatisfações veio com a emissão de uma Declaração Constitucional que, em efeito, imunizaria a Assembleia Constituinte e as decisões do governo de qualquer acção judicial. Esse facto acabou por lhe render um apelido: Faraó.
            Apesar de algumas particularidades da Declaração, como o pormenor de que tal só teria validade até a ratificação da nova constituição, e a justificativa de que tal medida visava apenas afastar a interferência de juízes ligados ao antigo regime, protestos seguiram com grande intensidade a partir de Novembro passado, e ainda Mursi se mostrava inflexível.
            A inabilidade do presidente lidar com a frágil situação política, com o descontentamento social, e a continuidade de políticas herdadas de antigos regimes como a política repressiva das Forças Armadas, a renovação de antigos acordos internacionais, e as negociações com FMI e suas medidas de austeridade levaram à insatisfação a se edificarem em forma de movimento organizado, nascendo assim o "Tamarod".
            Esse movimento é formado pelas mais diversas camadas sociais, apesar do esforço incial originar nas classes médias, e dos mais variados contextos políticos (inclusive islamistas), com o objectivo de coagir o presidente a convocar novas eleições presidenciais, e renunciar até o dia 2 de Julho, caso contrário seria colocado em acção uma massiva campanha de desobediência civil. Até então o papel militar, pela pessoa do General Abdul Fatah al-Sisi, se resumia a dar um prazo até o dia 3 de Julho para ambos os lados para resolver o impasse, sendo que após essa data seria colocado em prática um plano para a resolução, que não incluiria envolvimento politico.
            Ao dia 30 de Junho milhões de egípcios saem às ruas para a derradeira demonstração contra um governo que já se encontrava desgastado, com demissões em larga escala, e com um presidente em fuga na antecipação das demonstrações daquele dia. A situação então, do ponto de vista governamental, é irreversível.
            Na mesma altura muda-se o tom do discurso militar, e policiais e militares começam a aderir aos protestos, e no dia 1 de Julho começam ondas de ataque à membros da Irmandade Muçulmana, e manifestantes pró-Mursi.
            No mesmo dia, e sob oposição de camadas do Tamarod, as Forças Armadas emitem um ultimato de 48 horas para Mursi renunciar.
            Mursi, na tentativa de argumentar contra o possível golpe, discursa fazendo apelo à legitimidade democrática que lhe confere, e pede para que a população se oponha ao envolvimento militar. Discurso esse, que acaba por efeito contrário, e ao dia 3 de Julho é dado o Golpe de Estado, onde Mursi é então removido do poder, a Constituição suspensa, e é feita a nomeação de um presidente interino.
            O que se seguiu ao golpe foi uma demonstração de força semelhante à que se viu após a queda de Mubarak. São realizadas prisões em massa de membros do Partido da Liberdade e Justiça, da Irmandade Muçulmana, são relatadas ocorrências de violência contra jornalistas e o encerramento de canais como Misr25, e a alJazeera.
            Desde então a retórica violenta tem dominado ambos os campos, sendo que a força militar tem desempenhado um papel opressor dentro desse cenário; essa opressão e re-marginalização de movimentos islamistas, e de manifestantes opostos ao golpe, abre caminho para um cenário que pode fracassar o processo revolucionário e engrenar uma possível escalada da violência.
            Essa sequência de eventos levou até mesmo à proeminentes figuras e instituições que apoiam o movimento, como Bassem Youssef (o "Jon Stewart" egípcio), e a Federação Estudantil a serem vocais na sua oposição ao golpe e ao envolvimento militar.
            O principio para a oposição é simples: clamar a luta pela democracia enquanto se é autoritário, nada mais é do que incongruência. Não se oprime em nome da liberdade, por pior que seja a oposição.
            A questão que fica: é golpe ou revolução? 
            Extraordinariamente, são os dois.
É um golpe de Estado, com todas as características que lhe são de direito, e com o adicional de características revolucionárias. Não se pode ignorar o papel dos protestos massivos, e do apelo popular, tanto quanto não se pode ignorar o facto do então presidente ter sido retirado do poder sob força militar, seja qual for o pretexto.
Mursi e a Irmandade foram vitimas dos próprios pecados, da arrogância, da imaturidade e da incompetência, e a população em seu direito protestou, e insurgiu. Se tem alguma coisa que o lamentável envolvimento militar traz para essa equação é o risco de se abortar o processo revolucionário nascido em 2011.
        Embora o futuro egípcio hoje seja mais incerto que em 2011, e a intervenção militar tenha seus riscos, a situação não precisa ser encarada de forma exclusivamente negativa. Hoje existem mais atores e mais organização, e o que vai ditar o futuro a partir de agora é o nível de comodismo dos movimentos com a atual situação. Mesmo al-Sisi sabe que o Conselho Supremo de hoje, pode ser a Irmandade Muçulmana de amanhã.