Gaza: a guerra em câmara lenta

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Por Maciel Santos* (29/7/2014)

Aparentemente ninguém quer a guerra em Gaza, mas também ninguém quer que os bombardeamentos sionistas parem, pelo menos por enquanto.
Já se sabe que a intoxicação mediática sobre a tragédia palestiniana, sempre presente nos media ocidentais, costuma ter os seus pontos altos durante as guerras periódicas do estado de Israel. A vergonha a que se tem assistido durante últimas semanas em Gaza é portanto tão previsível como os fracassos dos planos de paz. O indicador de que um dos lados teve 1000 mortos e o outro 43 podia, enfim, dar que pensar mas para já o tempo é para conferências bilaterais,“iniciativas de paz” e apelos onusianos ao diálogo. Enfim, trata-se de assuntos sérios, que não podem ser tratados ao leve.

Mas para qualquer pessoa que não tenha “interesses vitais” na região, só há duas perguntas imediatas: o que está por detrás deste genocídio “colateral” e porque não foi ainda travado?
 Começando pelo que óbvio (que não se diz na imprensa):
- a renda do petróleo  (isto é, a diferença entre o custo de produção de um barril no Médio Oriente, cerca de 1 USD, e a sua cotação no mercado mundial) corresponde a vários biliões de euros por ano. Em 2004, com o petróleo a 30 USD/ barril, essa renda estava avaliada cerca de 1,5 bilião de euros – o equivalente ao PIB francês. Como se sabe, o barril está hoje a mais de 100 USD. É fazer as contas, como dizia em tempos o actual Alto Comissário da ONU para os refugiados.
-o estado sionista é o porta-aviões dos interesses americanos e europeus na região do Médio Oriente. O chamado Médio Oriente é um quadrado com 1 500 km de lado com 57% das reservas mundiais de petróleo e 40% das de gás natural. Desde 1948 que Israel tem cumprido o seu papel: inviabilizar qualquer politica pan-árabe na região, mantendo assim o status quo dos acordos coloniais dos anos da I Guerra Mundial.
-na renda do petróleo participam, para além das multinacionais do sector, os rendeiros de “posição” (os Estados detentores dos jazigos, dos oleodutos que os transportam ou simplesmente dos trajectos desses oleodutos). Uma última fatia vai para os Estados consumidores que cobram impostos de consumo. Muita gente, portanto, que quer fazer os seus negócios em sossego e para quem o estado de Israel está para ficar.

Voltando a Gaza: os cerca de 2 milhões de refugiados palestinianos que lá vivem são uma ameaça a este sossego? Sim, porque:
- são os últimos a poder aceitar “acordos” do tipo que a “comunidade internacional” tem patrocinado. Fazer “acordos” a viver dentro duma gaiola com 41 km de comprimento e menos de 12 de largura média parece pouco comódo, mas não há como experimentar. O governo sionista sabe que não haverá qualquer paz com os palestinianos sem alterar o estatuto de Gaza. Isto implica mais do que abrir as suas fronteiras (fechadas do lado egípcio e israelita): significa reiniciar a negociação global do processo negocial da terra, das indemnizações aos refugiados, da água, enfim da coexistência global entre sionistas e árabes.
- as águas territoriais de Gaza contêm 1 trilião de metros cúbicos de gás natural. Este recurso poderia, como dizia em Março o “The Washington Institute”,  “fornecer eletricidade a toda a faixa de Gaza e multiplicar as receitas da Autoridade Palestiniana”. Isto é, poderia fornecer receitas ao governo de Gaza e consolidar a resistência irredutível ao domínio colonial sionista.

É verdade que as águas territoriais de Israel também contêm reservas de gás, que parece até serem da ordem dos 30 triliões de metros cúbicos. Mas o que está em causa e o que pode alterar o status quo não é que Israel tenha agora mais liquidez para exercer o seu domínio colonial. Esse estará sempre assegurado pela sua qualidade de “porta-aviões” dos interesses petrolíferos. Também não são os famosos 32 tuneis por onde o "terrível" exército do Hamas (sem artilharia pesada) se poderia infiltrar, e que já existem desde há décadas. É o facto de o isolamento total dos palestinianos poder ser rompido através do único argumento que lhes pode dar reconhecimento internacional: poder de compra.
 Para o evitar, nada melhor que uma operação de força que leve o Hamas a negociar, por baixo da mesa, a renúncia parcial ou total aos seus direitos marítimos. E que mostre bem a qualquer potencial interessado em negociar a exploração de jazigos com a Autoridade Palestiniana como são efémeras e frágeis as plataformas marítimas perante raids aéreos.
Uma Autoridade Palestiniana com receitas petrolíferas não perturbaria apenas Israel (e os EUA, que através do Secretario de Estado Kerry, recente besta negra da imprensa sionista, já disseram ontem que sem o desarme total do Hamas a coisa não vai). Alteraria também as relações entre os outros estados regionais, que utilizam o conflito palestiniano para ganhar posições no Médio Oriente: desde a ditadura militar egípcia (que proibiu ontem um comboio humanitário formado por 11 autocarros que ia distribuir alimentos e medicamentos em Gaza) até ao governo AKP turco (que já não tem adjetivos para qualificar as acções de Israel mas ainda tem oleodutos para lhe transportar o gás). O jornal Al-Ahram, do Cairo, comparava ontem Gaza a um campo de futebol onde têm sucessivamente atuado, à distância claro, as “equipas” diplomáticas do Quatar, da Turquia, do Egito e da Arábia Saudita.
Portanto, para já, “apelos à paz” e bombardeamentos sobre populações civis não parecem incompatíveis para os governos, eleitos ou impostos.
Resta saber o que pensam os “eleitores” sobre a morte dos civis e especialmente das crianças. No Egito, a sociedade mobiliza-se: os donativos de solidariedade já chegaram aos 2 milhões de libras egípcias e está em marcha um segundo comboio.
E nos países da União Europeia, cujos contribuintes subsidiaram equipamentos sociais de que agora só restam ruínas em Gaza?


* Maciel Santos é Professor do Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais, da Universidade do Porto (Portugal).