O Filho do General

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por Thomas Farran Na última semana tive a oportunidade de participar da Semana Palestina realizada na cidade do Porto, em Portugal, e me sentar com o ativista a autor israelense Miko Peled para uma conversa sobre sua história, política, ativismo e o futuro. Miko nasceu em Jerusalém no ano de 1961, filho do general israelense Matti Peled que participou e idealizou operações de limpeza étnica na Palestina em 1948 e 1967 e que mais tarde foi uma das primeiras vozes sionistas adeptas da aproximação e do diálogo. Após perder a sobrinha de 13 anos em um ataque suicida em 1997, Miko começou sua jornada como ativista contra o que considera o principal responsável por essa violência: um regime racista e o seu contínuo plano de violenta ocupação. Em 2012 lançou o livro “The General’s Son” (tr.: ‘O Filho do General’), onde relata sua história e o processo de partir de uma família que participou ativamente na limpeza étnica de palestinos, para rejeitar toda a doutrina que lhe foi educada em Israel e se tornar uma das vozes israelenses mais ativas pelo direito dos palestinos. Arabizando (AR) - Miko, vindo de uma prominente família sionista, como se deu o processo descrito em seu livro, de desconstrução de suas crenças e noções sobre a causa Palestina, para onde se encontra hoje? Miko Peled (MP) – É um processo longo e que leva não apenas tempo, mas requer muita humildade, e que tem toda uma história por trás – motivo pelo qual escrevi o livro -, mas se tivesse que reduzir todo esse processo em um tópico, seria: conhecer palestinos e ouvi-los. É mesmo por isso que o título do livro leva “A jornada de um israelense na Palestina”. Como israelense, você não sabe que a Palestina existe, muito menos que vive na Palestina, então conhecer palestinos foi algo que tive a oportunidade de fazer apenas quando me mudei para os Estados Unidos, no próprio livro eu digo que a minha jornada para a Palestina começou nos EUA, onde pude ouvir, conversar, me reunir, e desenvolver uma confiança com refugiados e descendentes palestinos. O próximo passo foi visitar cidades palestinas, depois disso foi entrar na Cisjordânia, e assim, passo-a-passo, as portas para todo o resto foram se abrindo. AR – Com certeza, ainda mais quando a narrativa histórica israelense não apenas negligencia, mas apaga, todo e qualquer contexto palestino… MP – Sim, segundo a narrativa israelense, a Palestina não existe. Nem os palestinos. O caso é de negacionismo puro e simples. Não existe narrativa palestina dentro de Israel. AR – Qual a diferença, você diria, que existe entre o seu ativismo e o que você defende hoje, e o chamado “campo da paz” israelense? MP – Para começar, eles são sionistas e eu sou antissionista. Eles ainda estão ligados à uma ideologia racista, e eu sou antirracismo. Não existe “campo da paz israelense” porque o próprio conceito é um oximoro. Se você se define como sionista, implica que defende toda a noção de racismo e colonialismo em que o sionismo consiste. Mesmo que você defenda essa noção racista e colonialista em uma parte da Palestina, no caso dos que se dizem a favor da solução de dois Estados, a situação continua a ser absurda, já que esses dois elementos (racismo e colonialismo) são absolutos, e é justamente por esse motivo que não existem dois Estados. Ou seja, a diferença está entre se aceitar ou rejeitar o sionismo. Eu escolhi por o rejeitar. AR – Talvez outra diferença notável é o fato de hoje você ser uma das vozes que colocam em alto e bom som a solução de um único Estado democrático no discurso mainstream. Qual a predominância desse discurso em Israel hoje? MP – Inexiste. Não está de maneira nenhuma no discurso israelense. AR – E você sente que parte disso se deve a máquina de medo criada pelo sionismo, da “constante ameaça iminente”, e que esse medo da sociedade israelense da transformação de um sistema etno/teocrático, amplamente baseado no apartheid, por um Estado inclusivo e democrático, se deve ao fato de potencialmente eles se tornarem uma minoria? MP – Sim, o medo é de que os árabes virão e nos matarão todos, assim como os nazistas nos mataram, os romanos nos mataram, e por aí vai. É isso que nos é ensinado. O antissemitismo de fato existe, mas é objetivamente cultivado dentro da sociedade israelense. O medo é que se nós não estivermos no controle, “eles” – quem quer que “eles” sejam - virão e nos matarão a todos. Não existe um motivo racional para se esperar que os palestinos farão isso, mesmo porque eles nunca o fizeram; eles não têm um exército, e toda a causa Palestina se baseia na restauração de direitos e dignidade. Uma vez que esses direitos e a dignidade do povo são restaurados, teremos uma solução para a questão. AR – Você vê a predominância de movimentos de extrema-direita e partidos fundamentalistas no cenário político israelense como fruto dessa “máquina de medo”? MP – Todos os partidos políticos israelenses são de base racista e de direita porque, de uma maneira ou de outra, todos abraçam o sionismo. Não existe direita e esquerda israelense, e é uma piada quando assim colocam dentro do sistema sionista, porque uma vez em que se toca na questão palestina todos são extremistas e fanáticos. Não existe diferença nesse ponto. A única diferença que existe é quem ocupa as cadeiras, já que em termos de políticas todos partem para o mesmo objetivo. Temos que lembrar também que o projeto de Israel se iniciou em 1948 com pequenos grupos militantes, de extrema-direita, por meio do terrorismo e limpeza étnica. Esses mesmos grupos foram mais tarde institucionalizados e são hoje parte integral do sistema. AR – Então seria a criação e atual popularidade do contraditório conceito do “sionismo liberal”, uma forma do movimento se autopreservar da iminente implosão do sistema sionista? MP – Não existe “sionismo liberal”, tanto quanto não existe um “campo da paz”. O que se passa por “sionismo liberal” é uma farsa, já que não existe qualquer significado quando dizem que existe a intenção da construção de uma solução de dois Estados. É se esconder atrás desse projeto de solução, para afirmar o desejo de dominação israelense de todo o país, e até mesmo de toda a região. No final não passa de uma lavagem de imagem, uma tentativa de parecer menos vulgar do que um Netanyahu para o eleitorado, e para a opinião pública internacional. Nos EUA temos o exemplo da organização J Street, que é o que se passa por liberal, se publicitam como pró-paz e pró-solução de dois Estados, o que no final acaba sendo pior porque não passa de desonestidade, mais uma maneira de esconder o monstro com a finalidade de cooptação de toda uma comunidade. AR – E o que exatamente vem a significar o aparecimento internacional de movimentos e organizações judaicas que tem tentando se afastar de Israel? MP – Não acredito que estejam de fato a se distanciar de Israel, já todas ainda preservam de alguma forma um apreço pelo sionismo. O que temos são alguns movimentos da comunidade ortodoxa que rejeitam a construção de Israel, e alguns indivíduos antissionistas mais à esquerda política, como eu mesmo, mas que logo são classificados como ‘radicais’ pelo mainstream. Não existe uma vontade genuína de se distanciar de Israel, mas talvez de se distanciar do Likud de Netanyahu por uma questão de imagem. É política. AR – E vivendo agora nos Estados Unidos, qual a sua impressão da grandeza do papel da comunidade internacional – mais especificamente dos EUA – na perpetuação da ocupação e manutenção do status quo? MP – Em primeiro lugar, não existe status quo. A situação se deteriora diariamente para os palestinos, e a uma velocidade alarmante. Os EUA pagam bilhões de dólares anualmente para fazer com que a situação dos palestinos piore. Ainda hoje li que durante o curso de três anos, os Estados Unidos alocará 40 milhões na luta contra grupos extremistas em alguns países na África. Israel recebe a mesma quantia a cada quatro dias. Israel é um país desenvolvido, não precisa de ajuda externa, tem um exército massivo, não tem inimigos que apresentem qualquer tipo de ameaça existencial, e ainda assim recebe 40 milhões de dólares em quatro dias. Países africanos, subdesenvolvidos, com pobreza e ameaças reais recebem a mesma quantia em três anos, e acho que isso nos diz o suficiente de quanto os americanos contribuem para fazer com que a vida na Palestina piore. A cumplicidade americana com os crimes israelenses é colossal, algo além da nossa compreensão. AR – Para além é claro da proteção política e diplomática em meios como a UE e a própria ONU… MP – Com certeza, está incluído no mesmo contexto. A única diferença é que na Europa os movimentos de solidariedade cresceram de tal forma forte e objetiva, que os governos sentem que são obrigados a partir para a ação. O problema é que nos países com mais representatividade na UE, como Alemanha, Reino Unido e França, Israel ainda é tido pelos governos como um aliado e parceiro comercial, o que nos mostra o buraco que existe entre os povos – a opinião pública - desses países, e aqueles que os gerem. Como resultado, por enquanto, temos uma série de gestos vazios, como a recente onda de reconhecimento do Estado Palestino por parte de países europeus. O que há lá atualmente para reconhecer? É simbólico, vazio e covarde, porque acaba nos passando a impressão de que existe de fato um Estado Palestino concreto, e ignora a atual situação em terreno. Nos EUA, os movimentos de solidariedade têm crescido, mas não ao ponto de serem notados pela classe política. Ultimamente tenho conversado com políticos em Washington e muitos deles sabem da existência de tais movimentos, então a questão é que esses movimentos apenas ainda não tem grande relevância para gerar alguma mudança. Uma vez que esses movimentos cresçam nos EUA, veremos muitos melhoramentos em relação às políticas norte-americanas para com os crimes de Israel, e é daí que virá a verdadeira mudança. Políticos norte-americanos apoiam Israel porque é conveniente e dá acesso, a partir do momento em que essa conveniência se converter em fardo, esse apoio diminuirá drasticamente. AR – Dentro desses movimentos de solidariedade com origem na sociedade civil, o movimento BDS (Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções) é o de mais destaque, e o que tem surtido mais efeitos globalmente. Você encara movimentos como o BDS um começo, ou como as próprias ferramentas que mudarão o atual status de normalização com Israel, para a isolação ativa daquele país? MP – Como ambos, absolutamente. Se você conversar com pessoas da África do Sul, os mesmos lhe dirão que o BDS matou o apartheid. BDS levou o regime à completa isolação, o que acabou por destruir todo aquele sistema. Não deve haver qualquer tipo de tolerância com o racismo, com o apartheid e com o sionismo. Toda essa tentativa de dialogar com extremismo é fútil e não deve ser mais tolerada. A solução para Israel é a completa isolação política e económica daquele país. Enquanto toda a base daquele sistema for o sionismo, não existe razão para diálogo. Historicamente, toda conversa mantida pelo regime israelense teve como único objetivo ganhar tempo e minar toda a estrutura politica e social palestina. Não se trata de ser radical ou não, mas de ser racional. Não existem zonas cinzentas em se tratando de racismo e colonialismo. Se você escolhe apoiar Israel, não existe o quê ser discutido, você optou pela manutenção de um regime racista. BDS e a isolação são soluções, certamente. AR – Com as recentes eleições legislativas em Israel, quais são os prospectos para os palestinos – dentro e fora de Israel – para os próximos anos? MP – O único fato que interessa e de alguma significância foi a criação de uma lista conjunta palestina, após a tentativa israelense de dissolução dos partidos palestinos. Acabou por ser um “tiro no pé”, uma vez que dentro do cenário político israelense ninguém esperava que indivíduos de várias vertentes políticas diferentes fossem se unir para a criação de uma única frente palestina, e ainda com o benefício de apresentar uma cara nova como líder do bloco (Aiman Odeh). Essa situação acabou por acionar o alarme no Knesset, já que essa mesma frente palestina tem o potencial de atrair eleitores com mais tendência à esquerda política. É uma mudança não-intencional, mas que não terá um impacto suficiente para causar qualquer desvio na política israelense. Esse tipo de mudança não acontecerá até que todos do atual sistema caiam, e existam eleições livres e justas, “um homem, um voto” em toda a Palestina histórica. Até que todos os palestinos sob controle israelense possam ter o direito de se expressar politicamente, votar e serem representados, continuaremos a assistir a degradação da situação. A realidade hoje é que temos um sistema viciado, onde os palestinos são maioria, apesar do argumento de que dentro do que é reconhecido como Israel somem apenas 20% da população, mas essa realidade não é refletida politicamente. Tirando esse fato, quem ganha e quem perde é completamente irrelevante no que diz respeito à situação atual dos palestinos em Israel e nos territórios ilegalmente ocupados. AR – Nas últimas duas décadas, após os Acordos de Oslo, a situação tem se degradado a um ritmo absurdo. Como ativista, e tendo esse contato com as realidades palestina e israelense, você se sente esperançoso para um futuro no médio prazo? Ou pensa que ainda as coisas vão piorar antes de começarem a melhorar? MP – Não acho que as coisas possam piorar, mas acho que continuarão como estão até que ocorram mudanças substanciais. Não será algo gradual. Penso que nos próximos 10 anos teremos um movimento que vai crescer em força e que eventualmente derrubará o regime de apartheid na Palestina, mas não acho que acontecerá de forma gradual. A situação continuará como está, ou seja, muito má, com mais ataques contra Gaza, mais crianças palestinas sequestradas, e mais de toda essa rotina da ocupação israelense. Dito isso, também acredito que para os próximos 10 anos veremos grandes mudanças nas políticas com Israel, até o ponto de repetirmos o cenário sul-africano, como – por exemplo – a exigência para a libertação incondicional de todos os presos políticos, e o chamado para a realização de eleições livres, e justas onde prevaleça o princípio de “um homem, um voto” em todo o território. E essa será a mudança que esperamos.