Quando não somos Charlie

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Por Thomas Farran Na última quarta-feira, um atentado contra a sede do semanário Charlie Hebdo teve lugar em Paris. Um crime bárbaro e injustificável, sem qualquer sombra de dúvidas. Mas, como sempre, na carona da tragédia também ganha espaço o oportunismo. De repente, e previsivelmente, a questão ficou resumida à intolerância de religiosos da fé islâmica contra a liberdade de expressão representada então pelos trabalhos do periódico francês. Com o simplismo em que a questão tem sido colocada, digno de ressuscitar teorias Huntigtonianas em pleno século XXI, surge uma variedade de fenômenos sociais, não só na França, mas globalmente. Se engana quem pensa que se trata apenas de uma campanha de solidariedade, ou de “resistência” contra a opressão e censura de uma ideologia atrasada e violenta. A campanha viral #JesuisCharlie vai para muito além disso. É a reafirmação da condição de “nós contra os outros”, da qual o próprio Charlie Hebdo é ferrenho defensor. Sem querer duvidar da definitiva boa intenção da população em geral em se solidarizar com algo que lhe é muito mais identificável do que um ataque do mesmo gênero, por exemplo, no Iêmen, ainda existem perguntas a serem feitas se queremos considerar o peso e o significado que o não-tão-simples “Je suis Charlie” de fato carrega. Terrorismo como resposta ou violência como efeito político? A mídia internacional tem sido bem sucedida na propagação da narrativa dominante: de que o que se passa atualmente na França é o simples fruto da insatisfação de fundamentalistas religiosos com o conteúdo publicado pelo jornal de Paris. Longe de ser tão primária, a questão pode ser separada por camadas que vão desde a raiz desse tipo de ações violentas, até a condição marginalizada em que se encontra a grande população muçulmana na França. Das poucas informações que temos, confere-se a autoria do ataque à 3 homens já identificados, todos parisienses de origem árabe e muçulmanos. Dois deles, os irmãos Cherif e Said Kouachi, estiveram muito recentemente em campos de treinamento para rebeldes na Síria. Os mesmos campos financiados por potências ocidentais, sem qualquer controle sobre quem os frequenta, muitas das vezes sendo seminários intensivos de formação militar para estrangeiros  que se juntarão aos mais diversos grupos rebeldes “moderados” ou não, que atualmente se digladiam entre si, contra forças do ditador Assad e também milícias curdas. O armamento e treinamento generalizado de rebeldes, sem qualquer tipo de controle, por parte de atores externos – e inclui-se aqui a própria França – tem sido há muito tempo alvo de críticas e alertas sobre futuras implicações regionais e globais. Uma dessas implicações é a proliferação de extremistas treinados e com acessos às redes que possibilitam fácil movimentação e acesso a armamento, redes essas que só existem atualmente devido ao continuo financiamento de suas operações em território sírio e iraquiano. O fator marginalização social também é sumariamente ignorado nessa narrativa. Não se inclui na midiática versão dos fatos a ascensão da retórica da extrema-direita, o crescimento de políticas exclusivistas e discriminatórias em toda a Europa, a marginalização social velada em que não apenas muçulmanos, mas também refugiados africanos e da etnia Roma, são vítimas diariamente. Não se está aqui querendo justificar a barbaridade ocorrida na última quarta-feira, mas apenas demonstrar que Marine Le Pens, Christian LeClercs, Bernard-Henri Levys e o próprio Charlie Hebdo fazem parte da mesma equação, e que, para efeitos racionais, devem ser considerados no cenário. Quando um cidadão parisiense, imigrante ou não, tem chances de ganhar cinco vezes menos que seus colegas de trabalho simplesmente pelo fato de ser muçulmano, temos à pronta-entrega o rastilho de pólvora necessário para a detonação de qualquer tensão social. É claro que tensões sociais são ferramentas ordinárias aos oportunistas dos dois lados, que têm mais em comum do que julgam. De um lado criminosos, fanáticos e treinados, rejeitados no seio da própria comunidade e que se dizem lutar pela bandeira comum da fé islâmica; do outro, os reformadores de uma vertente política que há muito se julgava morta, e que vê em tragédias como a atual a perfeita oportunidade para a restauração de seus valores junto à uma apavorada e fragilizada população, invariavelmente apoiados em uma linguagem xenófoba, racista e islamofóbica. Colocado o cenário, resta-nos perguntar: a quem serve tragédias como essa? Em uma resposta simples, podemos dizer que serve ao mesmo tipo de gente que o humor da Charlie serve. Não, a Charlie há muito não é palco de sátiras da extrema esquerda, não é sagaz e nem é polêmica em seu conteúdo, nem liberal, e tampouco “critica tudo e todos com o mesmo peso”. Se esconder atrás do muro da liberdade de expressão para defender um semanário que não pensou duas vezes em demitir um cartunista após um desenho que debochava de judeus, apenas para mais tarde o mesmo cartunista ser processado, é no mínimo incoerente. Ainda mais em se tratando da França que, dentre outras coisas, baniu qualquer manifestação pró-Palestina em espaços públicos neste último verão, não coincidentemente durante a recente ofensiva israelense que resultou em mais um massacre de cerca de 2 mil palestinos. A mesma França que em um dia faz vigília pela liberdade de expressão, é a que no dia seguinte vai à Riade se prostrar e firmar parcerias militares com a Casa de Saud – que por tradição detém, condena e açoita até o mais simples blogger, como Raif Badawi. Entrar nos escritórios do jornal e provocar uma chacina serve tão bem ao Islã quanto o humor do Charlie. Dito isto, associar o massacre ao comportamento de toda uma comunidade numerosa e historicamente relevante dentro da França não é só um erro, mas uma tentativa deliberada de empurrar responsabilidades para quem não as tem. Proporções guardadas, não existem registros de cristãos noruegueses tendo que se desculpar pelo massacre causado pelo fanático Breivik em 2011, como tem sido esperado de muçulmanos pelo mundo todo. Breivik, cristão e sionista convicto, que matou 77 pessoas para chamar a atenção para o que chamou de “ameaças do Marxismo cultural e islamização do Ocidente”. Se culpam todo um secto de uma sociedade pela existência de fanáticos como no França, Breivik (ao contrário da narrativa do “psicopata só”), seguindo a mesma lógica, faz parte de algo maior também, com seu manifesto e inspirações em figuras como Pamela Geller e Geert Wilders. Ambos os casos têm o mesmo peso na balança e são face do mesmo fenômeno, são crias de extremismos, minorias e aberrações estatísticas. A diferença está apenas em como cada caso é tratado. Por motivos óbvios as conveniências e vantagens a serem tiradas da tragédia desta última quarta-feira irão servir aos suspeitos de costume, os setores mais conservadores e dominantes da sociedade francesa e da classe política europeia em geral. Para esses, o timing não poderia ser melhor. O mix de recuperação tardia e demasiadamente demorada da crise financeira que já se arrasta desde 2008, o fracasso de políticas internacionais com relação aos refugiados e conflitos na África e Oriente Médio, e as crescentes tensões políticas entre movimentos de direita e esquerda trouxeram para o velho continente algo que há muito o mesmo desconhecia: instabilidade. Para a classe política em geral, massacres como o ocorrido em solo francês trazem à tona mais uma vez a discussão da necessidade de readoção de políticas e comportamentos de união e coesão, em nome da sobrevivência e do enfrentamento do “outro”. Já para os setores mais conservadores, a “ameaça óbvia” do multiculturalismo e do fracasso das políticas de integração ganham suas provas cabais, e retomam-se – da Espanha à Ucrânia – com força as campanhas anti-imigração e nacionalistas, que aos poucos têm perdido o fôlego no último ano, dessa vez abastecido pelo medo coletivo através da mídia tradicional. Como resultado, um maior cerco contra imigrantes, refugiados, e um aumento exponencial na perseguição contra muçulmanos, inclusive violenta como já temos observado. Esquece-se que o crime é de responsabilidade única de seus perpetradores, e inicia-se mais uma vaga de punição coletiva, que levará inequivocamente a uma escalada da situação, alimentando assim um ciclo de violência, ressentimento e recriminação. Internacionalmente a lógica é a mesma, Estados Unidos reforçam a sua posição na “luta contra o terror”, e países como Israel tentam previsível e pateticamente recuperar alguma credibilidade ao tentar associar o ocorrido na França com o seu “papel fundamental na proteção dos valores ocidentais”. Valores ocidentais esses que, supostamente, são defendidos pelo Charlie Hebdo. Quando ao certo racismo, machismo, antissemitismo, chauvinismo e islamofobia começaram a fazer parte do leque de valores, é uma boa questão. Talvez para o que se compreende por valores colonialistas, que é o que está em questão. Essa não é uma batalha por valores, muito menos pela liberdade de expressão. A liberdade de expressão tem sangrado aos poucos todos os dias, e fanáticos armados em Paris é o menor de seus problemas. Essa é uma batalha por narrativas. Pelo poder de sugestão e de fabricação de um consenso, centrada em uma teoria há muito desacreditada. É o retorno daqueles que, afinal, nunca se foram. Esses são alguns dos motivos que coerentemente ainda é possível ser contra o massacre, ser a favor da liberdade de expressão e ainda assim afirmar com convicção “Je ne suis pas Charlie”.

Foto: Jean-Baptiste Gurliat/Mairie de Paris