Vamos falar sobre a Síria?

Escrito en BLOGS el


Por Thomas Farran
Para quem acompanha, tanto na imprensa internacional quanto na nacional, os assuntos do Oriente Médio, já deve estar acostumado com as polarizações do debate, e da satisfação de agendas no uso das informações. A guerra na Síria não deixa de se enquadrar nisso, e hoje é o tema que mais evidencia a queda de braço entre narrativas, que para além de fantasiosas, são essencialmente desinformação.

Escrevo aqui das narrativas que hoje dominam a imprensa - formal e informal (as ditas independentes) - e classificam o conflito de forma ilógica e desonesta como: "Bem x Mal", "Imperialismo x Resistência", "Revolução x Sistema", e mantras do gênero.
Seria impraticável, já para não dizer impreciso, utilizar-se de um enquadramento ideológico para tentarmos desconstruir as noções que continuam a ser passadas por verdade por todos lados, se  polarização do debate é evidente entre defensores do regime e de grupos militantes, o mesmo não acontece se analisarmos as posições adotadas pela esquerda e pela direita política.
No final, a verdade não é "relativa", e apenas é uma questão de saber contextualizar historicamente e politicamente para poder separar o que é fato, do que é ficção.
Assim sendo preparei uma lista com 10 dos argumentos mais comuns, de ambos os campos, usadas nas campanhas de disseminação da desinformação sobre a Síria.

1) O que acontece na Síria é uma revolução.
Esse argumento é usado tanto nos campos da esquerda quanto nos da direita, e parte do principio que o cenário que temos hoje deriva dos protestos, legítimos e populares, que se deram em Março de 2011.
Claro que pode-se argumentar que não deixa de ser uma revolução, pelo que nem toda revolução tem caráter progressista ou é politicamente de esquerda, mas normalmente quem se usa desse argumento, falha em levar em consideração que para haver uma revolução é necessário que haja um solido caráter popular.
E esse não é o caso.
O que se passa na Síria hoje é um conflito armado entre forças reacionárias: de um lado o regime - que não é de esquerda, nem do campo da resistência -, e do outro forças armadas e ideologicamente voltadas ao conservadorismo religioso, de forma extremista, enquanto patrocinadas e organizadas por atores terceiros.

2) Nunca houveram protestos legítimos na Síria, e a instabilidade deve-se totalmente às forças exteriores.
Quando os protestos começaram em 2011, na zona rural de Dar'aa, após forças do regime prenderem 15 crianças (idades entre 10 e 15 anos) por terem pichado palavras contra o regime, e já detidas serem sujeitas aos violentos métodos de interrogatório, estes foram espontâneos, populares e não tiveram qualquer caraterística sectária.
Tão logo mais protestos começaram a surgir, e o regime à repreender de forma violenta, pequenos grupos começaram a se originar, e aproveitar a já disponível instabilidade para articular ações violentas.
É verdade que incidentes violentos começaram a tomar lugar não muito depois que as manifestações começaram a se espalhar, mas também é verdade que o aparato de propaganda do regime foi rápido o suficiente para tirar os incidentes de proporção e classificar qualquer manifestação como obra de terroristas, legitimando assim a forma violenta como reprimia generalizadamente tais eventos.
A instabilidade atual na Síria se deve às décadas de políticas repressivas e economicamente desastrosas do regime, ao fervor e insatisfação social que era notável em áreas mais pobres, e também ao oportunismo de forças regionais para se aproveitarem do que poderia ter sido algo legitimo e sequestrar, não sendo mais do que uma ferramenta para manipular a balança do poder na região.

3) O regime de Assad na Síria é um símbolo da resistência anti-imperialista.
Não. O regime sírio não está engajado nem no campo da resistência, nem no campo anti-imperialista.
O regime de Assad é apenas um símbolo do despotismo que não largará o poder, e para isso se aliará seja com quem for. Prova disso são as palavras medidas com que o regime tem tratado atores como Israel, ou os países do Golfo, na intenção de salvaguardar um acordo, nem que seja no último minuto.
Ademais, normalmente quem se usa desse argumento tende a ignorar que o principal governo que está aliado com os ímpetos de Assad, é a Rússia de matriz conservadora e com ambições imperialistas.
Já agora, onde está/estava essa resistência e luta anti-imperialista na liberação das Colinas de Golan, ilegalmente ocupadas por Israel desde 1967? Ou na reposta aos ataques israelenses contra território sírio durante o conflito?

4) Os combatentes armados que lutam contra o regime sírio estão engajados em uma luta de liberação do povo sírio.
Do mesmo jeito que não exite revolução, não existem revolucionários.
Não existe um grupo armado sequer que esteja interessado no bem social comum, nem existe um grupo armado da oposição que não seja de matriz religiosa conservadora.

5) Assad é o responsável pela ascensão do sectarismo na Síria.
A imprensa internacional alinhada com interesses norte-americanos tende a ser persistente nesse argumento, muito embora não se possa verificar nem evidenciar tais alegações. As vezes em que surgiram relatos e notícias sobre a presença de linguagem sectarista em discursos de Assad, essas acabaram por ser falsidades.
É verdade, porém, que houve algum tipo de favorecimento à alauitas em alas militares essenciais , mas via de regra, as alegações de que a comunidade alauita detêm o completo poder do que se passa na Síria, não passam de exagerações. Nem entre os alauitas Assad foi, ou é, unanimidade.
Os grupos da oposição envolvidos no conflito armado sabem disso, e exploraram essas exagerações, alimentando um mal estar - e mais tarde praticando todo o tipo de crimes - de origem sectária.
Ou seja, enquanto não se pode verificar o uso do sectarismo como ferramenta do regime, o mesmo não se pode dizer dos grupos armados da oposição.

6) A mídia ocidental está empenhada em uma campanha de propaganda contra Assad. / A mídia oriental está empenhada em uma campanha de propaganda contra a oposição.
Generalizações à parte, os dois estão certos.
Acontece que boa parte de quem reclama da cobertura da Fox News, da CNN, e da al-Arabiya (propriedade da Casa de Saud), insiste em usar a Russian Today, a Press TV (iraniana) e a al-Manar (afiliado ao Hizbu'llah, aliado à Assad) como fontes fidedignas e imparciais, sem qualquer tipo de filtro - e vice-versa.
A verdade é que com alguma dose de conhecimento acessível e de pensamento crítico, é possível acompanhar o que se passa na Síria, e no mundo, a partir de múltiplas fontes e sem ficar refém das campanhas de propaganda e agendas.

7) O governo de Assad é de esquerda. / A Síria é Ba'athista, ou seja, secular e socialista.
O regime de Assad não carrega qualquer influência do Ba'ath, e é apenas uma continuação do modelo de governo de seu pai, à quem ele sucedeu.
O Partido Ba'ath, fundado na década de 40, nasceu de facto da fusão das ideologias pan-arabistas, socialistas e anti-imperialistas e foi durante duas décadas percursor desses movimentos na Síria e no Iraque, embora sempre contando com um caráter repressivo.
Hafidh al-Assad (pai de Bashar) tomou o poder na Síria em 1970, em um golpe que derrubou o então líder do Partido Ba'ath e do país, Salah Jadid, e consequentemente acabou por eliminar a componente da esquerda progressista cuja ele considerava radical. Enquanto Jadid esteve empenhado na luta anti-imperialista, e em implementar o pan-arabismo secular e socialista na Síria, Assad levou a Síria pós-golpe para exatamente o lado oposto.
Não é porque o nome Ba'ath permanece que as idéias são as mesmas, e nem é porque governos e líderes da esquerda apoiam Assad, que o mesmo é de esquerda.
O governo de Bashar al-Assad é de matriz neoliberal, e as suas políticas econômicas foram marcadas pelo evidente sistema de capitalismo de compadrio, por privatizações desregulamentadas, e por favorecimento à figuras leais ao regime, o que inevitavelmente contribuiu para o crescimento da desigualdade social no país. Na vertente social, durante o processo de ocidentalização, ou "modernização", não houve nenhum programa de valor que auxiliasse a população em forma de inserção econômica ou social, nem qualquer plano de estimulo para as bases econômicas, nem investimentos consideráveis em serviços e infraestrutura para a população. Esse tipo de negligência é notável em áreas rurais e afastadas de grandes centros.
Já o argumento do regime de Assad ser secular se dá com base em duas premissas: a primeira pelo fato do governo não favorecer nenhuma religião, e a segunda por a Síria não ter uma religião oficial. Essas poderiam ser usadas como argumento no que diz respeito à coexistência, mas não necessariamente como prova do caráter secular.
Na realidade para haver um secularismo pleno, temos que ter mais em consideração além dessas premissas e medidas cosméticas como proibir o uso do hijab. Para haver secularismo é necessário que haja um completa separação entre Estado e religião, e esse não é o caso quando se mantém um sistema judiciário duplo dividido entra a Shari'ah e os tribunais civis, e em que ainda são permitidos outros tipos de tribunais regionais baseados em leis religiosas.
Não é injusto dizer que o regime esteve empenhado em políticas de promoção e manutenção da tolerância religiosa, mas secularismo per se, é outra coisa.

8) Não existe solução para o conflito na Síria fora a guerra contra o regime/rebeldes. / Ou se está à nosso favor, ou contra a Síria.
Esse é o típico argumento que prova que os lados opostos têm mais em comum do que imaginam.
Nada pode ser mais "à favor da Síria" do que se opor aos dois lados comprometidos na destruição do país em uma disputa pelo poder.
escrevi anteriormente sobre as opções de resolução existentes para a crise na Síria, e mantenho que a solução definitiva passa necessariamente por um acerto político onde oposição e regime terão que ser incluídos, assim como outros setores da sociedade até agora ignorados, e a comunidade internacional terá que desempenhar seu papel de mediadora. Ainda em paralelo teriam que ser adotadas medidas administrativas visando o fim da violência, como embargo bélico geral, no-fly zones e o emprego de forças neutras em terreno pós-cessar-fogo.
Futebolizar a discussão com chavões, e apelo à mais violência e destruição é que não parece muito produtivo, para não dizer vazio.
Uma vitória militar, seja de que lado for, não resolverá o problema político e tenderá a piorar o problema social.

9) Os crimes dos rebeldes são piores. / Os crimes do regime são piores.
Sim, este é um argumento mais comum do que se imagina, como se fosse uma competição.
Ou pior ainda, ainda há aqueles que têm a insensibilidade vil de negar a existência de crimes.
São argumentos que não deveriam ser levados a sério, mas que tem tomado boa parte das justificativas para a escalada da violência no país.
O saldo final dessa competição mórbida será contado nos anos que se seguem pelos os que interessam ser ouvidos: as vitimas.
Até lá tanto os crimes do regime covarde de Bashar, quanto dos extremistas travestidos de revolucionários estão visíveis e bem documentados, e é irrelevante quem faz mais do que.
Cercos à cidades e campos de refugiados (Yarmouk ficará para a história, pelos piores motivos possíveis), carros bomba, barris explosivos jogados de helicópteros, execuções em massa, tortura e assassinatos de pessoas detidas e uso frequente de armas químicas são alguns desses crimes.
Assumir ou não, vê-los ou não, é uma questão de honestidade e respeito.

10) As eleições a serem realizadas em Junho são a prova de que o governo sempre esteve disponível, e não teme a democracia.
Essas eleições estão sendo duramente criticadas, e com razão.
Não se trata de questionar se existem apoiantes do regime, mesmo porque a resposta é óbvia. Existem, assim como existem sírios que apoiam os rebeldes e sírios que não apoiam nenhum dos lados.
A questão é outra.
Não há muito o que racionalizar aqui, desde que Hafidh al-Assad assumiu o poder em 1970, não houveram eleições para eleger o líder do país, qualquer tipo de oposição mais vocal foi perseguida e censurada, e o processo foi adiado sempre por falta de uma oposição "adequada". De repente, durante uma guerra devastadora, com partes do país inacessíveis e com um número recorde de refugiados e deslocados, se elabora uma eleição com candidatos anônimos, e sem quaisquer garantias práticas de uma realização ampla e adequada.
Em qualquer outro contexto esse ato seria de legitimidade contestável, por que nesse seria diferente?
Não existe um só argumento que consiga sustentar a legitimidade dessas eleições.
Com certeza para os que aplaudem essa farsa, banir qualquer oposição que esteja exilada ou não seja aprovada pela comissão do regime, e proibir todos os refugiados que saíram do país sem ser pelas "vias oficiais" (número que facilmente está nos muitos milhares) de participar nas eleições, deve ser uma decisão bem democrática e justa.



Gostaria muito de poder dizer que esses argumentos citados estão limitados à discussões casuais, ou à mídia de massa, mas infelizmente nos dias que passam, são retóricas cada vez mais utilizadas por acadêmicos, analistas, e até mesmo diplomatas.
Enquanto isso alguns militantes da esquerda que apoiam revolucionários de laboratório, financiados por potências reacionárias, que nada mais são mais que extremistas religiosos e mercenários, ou que apoiam as forças de um regime também reacionário e neoliberal, e outros militantes da direita que insistem no conto da revolução síria, e que anseiam pelo sonho de intervenção militar (embora a tenham apelidado carinhosamente de "intervenção humanitária"), continuam a tentar fazer sentido de tudo isso.

Definitivamente, a objetividade é um luxo.