Educação, censura e os direitos humanos

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Por Thaís Campolina Quando as perguntas que envolvem problemas sociais são feitas, a resposta padrão é a de que é preciso investir na educação para mudar a realidade. A escola, portanto, é colocada como um espaço essencial para a luta de diversos setores, incluindo o das mulheres. Mas há grupos que lutam contra a abordagem de qualquer assunto nesse viés, e por isso, a escola se tornou um espaço de disputa. Hoje conservadores buscam cercear os professores e as discussões que podem surgir numa sala de aula. Recentemente, a versão em quadrinhos dos diários de Anne Frank foi alvo de uma polêmica ao ser escolhido como material para uma turma de 7º ano. Pais fizeram reclamações sobre o livro usar termos como “vagina” e ser inadequado para a faixa dos 12 anos. O clássico que foi publicado pela primeira vez 1947 conta a história de uma jovem judia de 15 anos e a tensão que envolveu ela e sua família durante a Segunda Guerra Mundial, e apesar da temática pertinente, foi considerado impróprio simplesmente por conter questões que envolvem de forma mínima a sexualidade. O foco na palavra “vagina” e as críticas nesse viés feitas por alguns pais frente ao conteúdo de um livro inteiro serve como uma amostra de como muitos tentam censurar certas discussões na escola. Uma palavra considerada proibida afastou um debate importante sobre holocausto e a necessidade de conversar sobre a escola, a censura e os direitos humanos se mostra cada vez mais urgente, já que casos como esse estão se tornando comuns. Por isso, fiz algumas perguntas para Marcia Menezes, professora de sociologia na educação básica. Ela tem onze anos de atuação na escola pública e considera que foi na sala de aula que se tornou pesquisadora e hoje é doutoranda em ciências sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A presença de discussões sobre machismo, lgbtfobia e racismo nas escolas se tornou um alvo de disputa no Brasil. Como você vê esse processo? Por que tais questões se tornaram alvo? Nos últimos anos, a maior visibilidade e também a problematização das discriminações sofridas pelas minorias sociais, tais como o apontamento do racismo estrutural historicamente mascarado pelo mito da democracia racial, as questões relativas às identidades de gênero e sexualidades, e o lugar social da mulher, vêm ganhando espaço e notoriedade em nossa sociedade, manifestando-se não apenas no meio acadêmico, mas também na grande mídia e na cena parlamentar. No entanto, a maior incidência desses debates está sendo acompanhada por reações contrárias, especialmente quando voltamos nosso olhar para a escola. O currículo e o trabalho pedagógico estão hoje sob o alvo, sendo submetidos a diversos constrangimentos notadamente empreendidos por setores conservadores que vêm avolumando a sua influência em diferentes câmaras municipais e estaduais no país, assim como no âmbito federal, na proposição de leis que expressam preocupação com a presença, no processo formativo, de discussões que problematizem as concepções políticas, socioculturais e econômicas hegemônicas, especialmente as relativas às questões de gênero, orientação sexual e modelos familiares. Tramitam no congresso nacional projetos de lei que propõem coibir o ensino, nas escolas, daquilo que chamam de “ideologia de gênero” e outras formas de “ameaças à família”, por exemplo. Tais projetos se apresentam tanto como um instrumento estratégico de mobilização e propaganda de determinada visão de mundo, quanto instrumento jurídico de controle da escola e do trabalho docente que, no entanto, não dependem de sua plena vigência jurídica para obter os efeitos desejados. Ainda que o debate legal sobre a constitucionalidade de tais propostas esteja em disputa, o clima de denúncia, suspeição e vigilância já se faz presente nas escolas, impondo autocensura e alteração de práticas e comportamentos, assim como incidem sobre o currículo planejado e implementado. Tais discussões provocam desconforto e polêmicas nas escolas porque estão profundamente ligadas a questões que esbarram em campos morais de nossas vidas, como a nossa ideia do que é família, os papéis sociais de gênero que nos são imputados antes mesmo do nascimento e valores religiosos, por exemplo. Campos que na aparência são da ordem do privado, mas que um olhar mais aguçado revela o quanto o privado é político, uma vez que tais questões interferem diretamente na vida pública de uma sociedade. Basta olharmos para o debate legislativo sobre aborto e a interferência das diferentes perspectivas religiosas sobre ele ou para a persistente desigualdade salarial entre homens e mulheres para vermos o quanto essas questões privadas são públicas. Muita gente considera que a escola não deve abordar questões sociais como os estereótipos de gênero nas aulas. Essas pessoas argumentam que esse não é o papel da escola, que a escola deve se ater a ensinar matemática, português e afins. Qual é o papel da escola para você? Poderíamos pensar que é papel da escola tomar como objeto temas que dizem respeito a vida social. No entanto, esse entendimento sobre o papel da escola e quais temas lhes são relevantes são eles mesmos alvos de discordância. A escola não está apartada do mundo. As contradições sociais também estão presentes dentro da escola via seus agentes (docentes, estudantes, direções, famílias e etc.). Ela é um grande campo de embates, de disputas políticas e ideológicas, manifestas desde a formulação do seu projeto político pedagógico, das escolhas curriculares, dos livros didáticos a serem adotados, até cada palavra que se usa nesse espaço. Por isso, podemos afirmar que a escola tem o potencial papel de tensionar silenciamentos e invisibilidades, desmascarando e combatendo discriminações. Mas esse é um papel potencial e não da sua natureza. São os seus agentes, a partir de suas práticas cotidianas, que poderão fazer desse espaço um lugar que vai muito além do de transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e instrumentalizar jovens a ingressarem no “mundo do trabalho”; são os seus agentes que podem fazer desse espaço um espaço social de formação humana integral, plural, socialmente referenciada e democrática, privilegiado para discussões que desnaturalizam e desestabilizam as relações sociais de poder vigentes. Essas discussões podem estar presentes em todos os momentos da vivência escolar e em todas as disciplinas. Claro que tradicionalmente sociologia, história, geografia trazem essas discussões em seus conteúdos programáticos, mas a simples observação, em um livro didático de química, por exemplo, da quase inexistente referência a cientistas negros e mulheres, já propicia a problematização de questões tão caras a construção de uma sociedade igualitária. Como é possível enfrentar esse conservadorismo que coloca professores como alvo de censura? É importante nesse momento de ameaças à conteúdos escolares ressaltar a vigência de legislação e políticas públicas educacionais que dão segurança legal aos docentes para que haja o debate acerca das discriminações de minorias sociais na escolas, em vista a uma transformação das relações sociais. O Brasil é signatário de acordos internacionais que, diante das desigualdades expressas nos indicadores educacionais com relação a questões de gênero, raça/etnia, renda, sexualidades e outros, orientam a construção de instrumentos que possibilitem a criação de estratégias que contemplem os desafios da promoção da igualdade nesses diversos recortes. Sobre esse ponto, é interessante também destacar o papel dos estudantes. Eles vêm cada vez mais se apropriando desses debates e pautando de forma bastante propositiva dentro das escolas a necessidade de seu enfrentamento. Assim, trazer para o centro do debate escolar o modo como os marcadores sociais da diferença na nossa sociedade vêm ao longo de sua história produzindo desigualdades tem se apresentando como tarefa urgente nas escolas. Esse espaço – embora não apenas ele – tem as potencialidades para qualificar tal debate e desvendar as origens sociais das desigualdades, problematizando-as e propondo novas maneiras de enxergar o outro e de relacionar. Imagem destacada retirada da campanha "O Valente não é Violento" da ONU Mulheres. Saiba mais sobre aqui.

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