A resistência do oprimido, a barbárie e o racismo.

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Tenho um pouco de receio de que falar sobre esse assunto seja chover no molhado.Porém no finalzinho da semana passada dois vídeos (que nem sei se são antigos ou atuais) pularam na minha timeline e eu vi a necessidade de fazer um paralelo entre eles. O tema é violência e é polêmico. Há os que dizem que jamais é aceitável, que não deve nunca ser relativizada e que gera apenas mais violência. Há um outro grupo que diz “direitos humanos para humanos direitos”. Eu não faço parte de nenhum dos dois. 
“Não confunda a violência do opressor com a resistência do oprimido”, a frase do Malcom X ilustra perfeitamente os momentos nos quais eu acho que a violência não é condenável. E aqui não estou dizendo que é eficaz, que deve ser estimulada nem nada do tipo. Estou apenas dizendo que, se a violência só por ser violência fosse igual em todos os contextos não existiria na nossa lei algo chamado “atenuantes”. 
Aqui entra entra o primeiro vídeo. Uma garota ao ser humilhada pelo professor em sala de aula o chuta no meio das pernas e corre. Para mim está bem claro como esse revanchismo não se dá de maneira bárbara, racionalizada, mas sim passional. Nessa história alguém se sentiu humilhada a tal ponto que não aguentou mais permanecer inerte e reagiu ali de forma rápida e emocional com as armas que tinha. Desespero, resistência, legítima defesa, entre outros nomes expressam como a violência da menina é diferente da violência do professor. 
Inclusive, a expressão “legítima defesa” já deixa claro o que estou querendo dizer: Existem casos em que a agressão é simplesmente legítima. Ninguém está usando as palavras “correta”, “exata”, apenas que o ser humano tem o direito sim de, ao ser colocado em uma situação de violência e opressão, responder ao agressor para defender a si mesmo. Lembram do caso de Severina Maria da Silva? Uma mulher que era abusada pelo pai desde os nove anos de idade, criou cinco filhos dele e (vocês vão me desculpar, mas vou dizer: finalmente) ao ver uma de suas filhas ameaçadas encomendou a morte do homem. E foi absolvida. E com toda razão. 
Agora vamos ao próximo vídeo, esse eu não recomendo que assistam, de verdade. Se você tem um pingo de racionalidade (pois é, não estou falando de emoção, estou falando de racionalidade mesmo) consegue ver o quanto ele é absurdo. Trata-se de um menino amarrado em um poste sendo açoitado. Assim, levando pauladas, garrafadas, sangrando e um monte de gente em volta vendo. Inclusive esse vídeo não é o único, se você tem tanto azar quanto eu já deve ter pulado na sua TL alguma imagem de um homem todo esfaqueado, capado, dentre outras cenas no estilo, seguido de pessoas aplaudindo e dizendo “é, tem que fazer isso mesmo, a nossa justiça não funciona, a justiça tem que ser feita com as próprias mãos”. 
No vídeo e nas imagens em questão existe um padrão muito curioso: Ninguém sabe exatamente o que os acusados fizeram, mas de qualquer forma, eles merecem. Por via das dúvidas, né? Uma das poucas palavras que dá para se ouvir no vídeo é “roubar” -  e aqui nem vou entrar no mérito de comparar um dano material causado por ele com o dano físico com requintes de crueldade cometido pelos outros – mas de qualquer forma, imaginem o vídeo sem som algum, assim como as imagens não costumam ter som algum. As reações seriam diferentes? As pessoas que dizem “direitos humanos para humanos direitos” deixariam de fazê-lo? Eu acredito piamente que não. 
Agora imagine o mesmo vídeo, também sem som algum, com a única diferença de que o rapaz que está sendo agredido fosse branco. Sim, eu disse branco. E aí eu boto minha mão no fogo de que a história mudaria. Porque o menino negro todo mundo parte do pressuposto de que é ladrão, é assaltante, é bandido e merece ser açoitado, humilhado, morto. Agora se o menino fosse branco com certeza estaria sendo agredido gratuitamente, deveria estar sendo assaltado seguido de uma mutilação dessas alguém chame a polícia, salve-o, socorro! 
É sim, todo esse papo vingador de gente que acha bonito ver essas imagens brutais e acreditar, mesmo sem prova nenhuma, que se tratam de pessoas que estão ali porque merecem está permeado por muito racismo. É preto? Então deve ser bandido, estuprador, pedófilo, não sei, sei que alguma coisa deve ter feito para merecer isso. 
E esses casos de barbárie não são nada incomuns na nossa sociedade. Especialmente em casos de pedofilia, estupro, assassinato e outros crimes que chocam a população, logo aparecem os justiceiros. Aqueles que juram que não são cruéis como os que cometem tais crimes, mas de repente se veem dispostos a vingar a vítima de qualquer forma, aliás, qualquer não, tem que ter muito sofrimento, muito sangue, se não não vale. 
Dentre os milhares de erros que eu vejo nesse tipo de atitude, existe um ridículo de óbvio: Alguém perguntou para a vítima? Essas pessoas tão preocupadas com o que aconteceu a vítima perguntaram se ela se sentiria melhor caso seu agressor fosse linchado, açoitado, assassinado em “homenagem” a ela? 
Existe um filme chamado Confiar, se você ainda não assistiu, eu recomendo que o faça e peço desculpas antecipadas pelo spoiler que estou prestes a fazer: O filme conta a história de uma adolescente (13 ou 14 anos, não me lembro bem agora) que é abusada sexualmente. Ciente disso o pai dela se joga na busca para defender sua filha. Quer entrar na internet, investigar, comprar uma arma, encontrar o agressor, matar todos os pedófilos do mundo, só não quer... ouvir a filha. Tão obcecado com essa ideia da vingança ele esquece de ajudar quem realmente precisa dele naquele momento, a própria filha. 
Plínio comenta
Dia desses ouvi falar sobre um caso famoso da cidade para qual acabei de me mudar. Homens que, depois de estuprar uma garota e matar seu namorado, foram espancados, assassinados e por fim queimados em praça pública. Tenho também a certeza de que ninguém perguntou para a moça se ela se sentiria melhor caso fizessem isso (particularmente eu me sentiria ainda pior, muito pior). Mas de qualquer forma, ao imaginar tamanho absurdo minha mente começou a viajar (sempre fértil) e pensei que se eu estivesse presente quando isso aconteceu, me jogaria na frente deles. Sim, eu “defenderia” os estupradores. Imediatamente imaginei também a reação das pessoas caso eu fizesse isso: “vadia, vagabunda, merece ser estuprada!” e por que não aproveitar para me agredir também? E por que não fazer comigo o mesmo? 
Quão melhor do que o próprio estuprador é a pessoa que diz que o estupraria “para aprender”? Quão melhores seriam essas pessoas na minha cena imaginária que julgariam, linchariam, agrediriam uma pessoa inocente apenas para fazer valer sua própria “justiça”? E que, com certeza, não perceberiam que em suas próprias palavras estaria reproduzida a cultura do estupro que colabora para que esse tipo de crime continue acontecendo? 
A resistência, a defesa de si mesmx, do próprio corpo e da própria dignidade são sim legítimas. Ninguém pode julgar alguém sendo que ninguém sabe como reagirá em determinadas situações de opressão, pode ser que você aguente caladx, mas pode ser que imediatamente seja tomadx por uma emoção muito forte que te faça agredir com a mesma força (ou mais) aquele que antes te violentou. 
Entretanto isso é muito, muito diferente do sentimento vingador que envolve a nossa sociedade e a faz mostrar a primeira oportunidade toda sua barbárie. É como se estivessem todos parados, não lutando contra nada, não buscando compreender nada, não defendendo causa alguma, apenas esperando o primeiro negro pobre cometer o que quer que seja (mesmo que não saibam o que é) e pronto: Essa é a hora, o lugar e a pessoa para descontar todas as suas frustrações pessoais, para ver o sangue que você quer, para ser o quão cruel você sempre quis, tendo uma desculpa, se sentindo o justiceiro, o herói da história.