Aborto no mundo: criminalização mata mulheres no Brasil e na Irlanda

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 Texto de Flávia Simas
Anistia Internacional 
Sábado próximo, dia 27 de setembro, ocorrerá a Marcha pela Escolha (pelo direito ao aborto seguro), o principal evento feminista do ano aqui na Irlanda. Eu tenho acompanhado o trabalho do Galway Pro-Choice, um grupo feminista de base dedicado a promover esclarecimentos quanto ao tema junto à população. Sempre que posso, me voluntario com o coletivo. Quarta-feira passada, por exemplo, nós fizemos uma banquinha na rua principal da cidade, para recolher assinaturas e distribuir panfletos. Essas assinaturas fazem parte de um abaixo-assinado para que a emenda constitucional número 8 seja derrubada. Tal emenda foi aprovada após um referendo feito em 1983, com vitória dos anti-escolha, que acabou por igualar a vida do embrião e feto à vida da mulher. 
 
 
Banner da Marcha, que ocorrerá em Dublin
 
Em 2013, após a morte de Savita (eu toco um pouco no assunto aqui), novas leis foram colocadas no papel devido à pressão da população diante dos absurdos aos quais a mulher que precisa interromper uma gestação é submetida no país. Entretanto, a emenda 8 é um grande empecilho à aplicação prática das novas leis, simplesmente por afirmar que a vida do embrião tem o mesmo peso que a vida de uma mulher. O caso mais recente é o de uma refugiada (a nacionalidade dela não foi divulgada pela mídia), que buscou um aborto pois estava em vias de se suicidar. Ela foi estuprada em seu país de origem, correu para cá e em poucas semanas descobriu que estava grávida do estuprador. 
 
A jovem de 18 anos, que se encontrava em estado profundo de depressão e em vias de se matar, buscou orientação médica. De acordo com as novas leis, bastava uma junta médica avaliar a sua situação para que o aborto fosse realizado. Porém, como o preconceito ainda impera por aqui, o psiquiatra avaliou o quadro dela como "não suficientemente suicida". Ela continuou apelando e ouvindo 'NÃO' como resposta, até que resolveu parar de comer e beber água completamente. A situação foi se arrastando de poucas semanas até umas dezoito semanas de gestação, quando os médicos se aproximaram dela e a convenceram a voltar a comer porque se ela se 'fortalecesse', eles poderiam realizar o aborto. 
 
 
 
 
A mulher, então, voltou a se alimentar e os médicos esperaram até 25 semanas para realizar uma CESÁREA nela. O bebê foi "salvo" e a equipe ficou conhecida como salvadora da pátria. A moça ainda se encontra em estado de choque, sua depressão piorou e ela simplesmente não consegue acreditar que existe por aí um bebê, que fora apelidado de ESPERANÇA, que é resultado de um estupro que inclusive ocasionou a sua saída de um país (provavelmente algum país em guerra). 
 
O que salta aos olhos nesse caso é a frieza com a qual uma mulher foi tratada desde o início. Uma situação que poderia ter sido contornada de forma razoável em seu primórdio (o aborto não iria resolver todos os problemas da menina, mas pelo menos aliviaria a dor de carregar dentro de si a lembrança constante de um ato de extrema violência). Mais uma vez, ativistas foram às ruas protestar sobre a falta de consistência das leis irlandesas, que foram inclusive apontadas pela ONU como extremamente falhas no tocante à proteção da saúde reprodutiva de suas mulheres. Segundo o relatório das Nações Unidas, a mulher irlandesa é, hoje, nada além de um reservatório. Tendo-se em conta a forma como as leis tratam a mulher aqui, foi iniciada uma campanha online com os dizeres 'Não sou um reservatório', para tentar lembrar à população que as mulheres desse país não são meros recipientes de embriões, que podem ser descartadas após 'salvarem' os bebês, conforme ocorrido com a refugiada em questão. 
 
Então lá fui eu, participar de protestos artísticos em que utilizamos placas com os dizeres "prisioneiras da emenda 8" e fitas adesivas tapando as nossas bocas. O que mais me marcou, porém, foi a tal banquinha, tanto positivamente como negativamente. Muita gente se aproximou de nós no melhor estilo 'bate e corre', para nos direcionar impropérios e nos deixar ver o quão vazias, mal-amadas e preconceituosas elas são. Tudo sem esperar por uma resposta, obviamente. A ignorância nunca tem a humildade de ouvir, discutir e buscar soluções. A ignorância sempre tenta colocar um ponto final no lugar de todas as vírgulas, como se isso não mexesse com vidas, principalmente de minorias. 
Nosso protesto
Entretanto, existe um outro impacto, positivo, que só o ativismo de base e o corpo-a-corpo nos fazem perceber. Teve uma mulher que parou e perguntou se nós precisávamos de dinheiro para alguma coisa, pois ela, por questões muito pessoais, apoia muito a nossa causa. Com os olhos marejados, ela nos deu um troco para um lanche. E nós nem estávamos colhendo dinheiro, apenas assinaturas. Teve um senhor que parou e nos contou de sua parente, que precisou fazer um aborto nos anos oitenta e teve que passar por uma via crúcis para chegar à Inglaterra. 
 
 
E teve uma mulher, que aparentava ter a minha idade, que parou ao meu lado e me contou a sua história. Ela me disse que tem um filho e ficou muito feliz ao descobrir que estava grávida novamente. Ela e o marido estavam planejando a criança, que seria muito bem vinda ao mundo, caso tudo desse certo. Não deu. Foi constatado via ultrassom que o feto tinha anencefalia e outras deformidades que tornariam inviável a sua vida após o parto. Com lágrimas nos olhos, ela me revelou que seria uma tortura levar a gravidez adiante. "Ter que aguentar as pessoas passando a mão na minha barriga, perguntando do enxoval, do nome da criança, ver meu filho empolgado com a idéia de ter um irmãozinho ou irmãzinha, tudo aquilo me deixou num estado de depressão profunda". Eu perguntei o que ela fez, e ela me contou que foi para a Inglaterra, com o apoio de toda a sua família."Você só percebe isso quando está envolvida numa situação assim… você percebe o quanto é frágil e humana… eu só queria que as pessoas julgassem menos. Afinal de contas, eu precisava ter forças para cuidar do meu filho, que já existe, que já tá aqui, e uma gravidez assim só estava me levando ao esgotamento". Ela então nos agradeceu por estarmos ali, assinou nossa petição e seguiu a sua caminhada. Porque é um absurdo que em pleno século XXI um país europeu submeta as suas mulheres à leis de barbárie, a Marcha pela Escolha vai acontecer nesse sábado. 
 
 
Enquanto isso, no Brasil, a situação vai de mal a pior, apesar de a situação ser mais avançada que a da Irlanda. O STF liberou o aborto de fetos anencéfalos há pouco tempo mas o direito ainda é muito frágil, já que não se encontra assegurado por lei, sendo que o Congresso tem o poder de passar por cima de decisões do Supremo através da edição de uma lei contrária. Dois casos chocantes vieram à tona recentemente, de mulheres que morreram ao tentar um aborto clandestino. Deixarei alguns bons links ao fim desse texto, com um apelo: precisamos falar sobre o aborto. O assunto, tanto aqui na Irlanda como no Brasil e na maior parte da América Latina, precisa ser colocado em pauta, urgentemente. Dia 27 discute-se o assunto aqui, já no dia 28 comemora-se o dia Latino-Americano e Caribenho pela descriminalização do Aborto, e o momento é propício para mais e mais discussões a respeito e, quem sabe, uma derrubada das leis fascistas que desconsideram as mulheres em toda a sua humanidade. 
 
Jandira, cujo corpo foi encontrado carbonizado - um exemplo da brutalidade das leis atuais
 
Não dá pra continuar fazendo vistas grossas a casos como os que narrei aqui. A casos como o da Jandira e da Elisângela, que morreram em clínicas clandestinas. Esse tipo de atitude punitivista não faz bem a ninguém. Está na hora, também, de pararmos com a posição "eu não faria, mas..." porque trata-se de uma situação que pode acontecer com qualquer mulher em idade reprodutiva. Nós nunca sabemos o dia de amanhã. Quantas mais precisarão morrer para que tomemos uma atitude? Até quando vamos fingir que o aborto é coisa que só "vagabundas" fazem? Vai levar quanto tempo para deixarmos os rótulos de lado e discutirmos honestamente a questão? Quanto tempo mais?
 
 
Bons links:
 
Quando é o momento certo para pautar a legalização do aborto? Por Thaís Lapa *Aborto legal, seguro e gratuito não é apenas direito das mulheres, homens trans e pessoas não binárias com útero também podem engravidar.  A reivindicação é para todas essas pessoas. E nem todas as mulheres podem engravidar e tem útero. 
 
Texto de Flávia com colaboração de Thaís