Cultura do estupro no espaço público: Nosso direito de ir e vir ameaçado.

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"Las leyes son como las mujeres, están para violarlas".
 As leis são comos as mulheres, existem para serem violadas.

A frase, incrivelmente misógina, foi cometida há algumas semanas atrás pelo então presidente do Conselho Geral da Cidadania Espanhola no Exterior, o senhor José Manuel Castelao Bragaño. Felizmente, a repercussão negativa fez com que ele renunciasse ao cargo poucas horas após ter verbalizado tamanha imbecilidade (cargos de poder nas mãos de machistas é uma coisa que tira a tranquilidade do meu sono). Então, se ele foi afastado, qual o problema? O problema, queridxs, é que embora a sociedade rejeite de pronto uma frase que explicita o estupro, não rejeita uma série de outras frases e atitudes que acabam por tornar banal para o cidadão comum aquilo parece chocante quando colocado com tanta clareza.

Há uma relação óbvia entre a frase e a cultura do estupro. Já tocamos no assunto algumas vezes, mas não custa relembrar: quando usamos a expressão "cultura do estupro", nos referimos a como a sociedade coloca as mulheres em posição objetificante e vulnerável, através de pequenas violências e de um discurso agressor (porém velado) que acabam por fomentar o estupro. Aqui no blog falamos do assunto na época dos protestos contra a Nova Schin e contra a Prudence.

Imagem da Página Transexualismo
da Depressão, no Facebook
Dessa vez, entretanto, quero focar no espaço público, que é palco constante dessas demonstrações de desrespeito com as mulheres. Por vezes ressaltando aquilo que temos em comum (ou seja meramente por sermos mulheres), e outras vezes desrespeitando aspectos singulares de cada mulher. Por exemplo: mulheres trans são consideradas aberrações, transformam sua identidade num mero fetiche; mulheres negras são hipersexualizadas, uma lembrança do nosso passado escravagista; Funkeiras são as novas Genis; Gordas são humilhadas por estarem fora do padrão estético eurocêntrico e racista vigente (Alô, Marisa!); mulheres que se prostituem são desvinculadas de sua humanidade, tornando-se mero objeto, de forma que estão à disposição de qualquer abuso, num grau de vulnerabilidade muito grande e assim por diante. E é claro, tudo isso pode vir a desencadear um quadro de violência física também. No fim, em maior ou menor escala, o espaço público é hostil com as mulheres.

Essa hostilidade não encontra respaldo em lei escrita, pois as calçadas de toda e qualquer cidade não vêm marcadas para um gênero específico, tampouco o transporte público. A rua não tem dono, de forma que todxs possuem o direito de ir e vir. Contudo, para as mulheres esse direito está sempre ameaçado. 

Mulheres no mundo todo sofrem com o
assédio, independente da roupa que usam.
Não faltam exemplos: Há poucos dias, fiquei sabendo de um fórum dentro do Imgur em que um professor postava fotos que tirava de suas alunas menores de idade (sem a sua permissão, claro). Ele simplesmente as fotografava em espaços públicos e colocava a foto no fórum. Seguindo o tenebroso exemplo, criaram uma página no facebook em que postavam fotos de mulheres no metrô de São Paulo. ~~Daora a vida, néaum?~~ E sabe o que é pior? alguns dirão que elas já tinham se exposto no espaço público ao sair de casa vestindo roupa justa, colada, curta ou o que for. Mas elas nunca autorizaram ninguém a fotografá-las e usar sua imagem para fins punhetísticos. Simples assim, o corpo de uma pessoa é uma exclusividade dela, a roupa que ela usa não diminui esse direito. Aliás, roupa não previne o estupro em lugar nenhum do mundo. A forma como fala, anda ou se comporta, nada disso é determinante.

Imagem de documentário de
Sofia Peeters sobre o assédio nas ruas européias
São muitas as pequenas manifestações abusivas no tocante ao corpo da mulher. Outro dia, uma amiga relatou que estava dentro do táxi, no semáforo, quando um motociclista parou ao lado do veículo e ficou olhando as pernas dela. Ela fechou o vidro, indicando que estava incomodada e o sujeito continuou a observá-la. Outro exemplo é um depoimento que recebemos nos primórdios desse blog de alguém que sofreu abuso num espaço público. E o que as pessoas que estavam perto fizeram? Riram dela. 

Quadro BIZARRO do  Programa Zorra Total
Está tudo muito errado quando a maior emissora de TV aberta do Brasil coloca um quadro humorístico em que mulheres são bolinadas no metrô e se sentem agradecidas por isso. Sabe aquela piadinha super ~~politicamente incorreta~~ que afirma que mulher feia tem que agradecer se for estuprada? Pois é, continua fazendo muita gente rir, mas faz com que algumas pessoas lamentem também. É claro que nas cabeças conservadoras o lamento de alguns é menos importante que a diversão de outros. Só que o problema é tão sério que em muitos metrôs do mundo existem vagões exclusivamente femininos. A incorreção da piada não evoca nada de novo, de transgressor, apenas legitima o estupro, que é prática opressiva mais velha que o mundo. 

Giovana contando sobre
o assédio que sofreu
Mesmo com todos esses argumentos, os defensores do assédio de rua alegam que se estivessem em situação oposta, se em vez de assediar, fossem assediados, eles gostariam muito. E é aí que entra o privilégio: Mulheres são assediadas nas ruas desde muito jovens. Ao entrar na adolescência se torna comum ouvir todo tipo de cantadas. Acredite ou não, isso nos causa medo. Desde cedo passamos a temer pela nossa integridade física, pelo nosso corpo. Não precisa sequer adentrar qualquer tipo de padrão de beleza para isso, mulheres que não se enquadram nas características racistas e gordofóbicas do padrão eurocêntrico de beleza que rege a sociedade ocidental também são vítimas de assédio e de estupro. Assediar alguém na rua não é uma forma de abordar, de conhecer, é meramente uma forma de intimidar e mostrar poder. Quando reclamamos do desrespeito, entra em ação a eterna galerinha do "deixa disso" que acredita que a paz só reina no não enfrentamento, que é a forma como toda mulher deveria agir: de forma passiva. Afinal cantada de rua não é assédio, é elogio, eles dizem. Quando fugimos à passividade de considerar que assédio é um afago no ego, nos dizem para andar em outras calçadas.

Marcha em BH
Além dos espaços de transição, dos meios de transporte, há espaços que são considerados determinantes para definir o caráter de uma mulher, acredite você ou não, o ano é 2012, mas ainda tem gente achando que mulher que frequenta baile funk não se dá ao valor ou que bar que tem sinuca não é lugar de mulher. Enfim, aquela velha história de tentar determinar o que é "lugar de mulher". Terrível, mas esse pensamento ainda existe e se propaga na medida em que o direito de ir e vir de uma mulher é cerceado pelo assédio, pelas ofensas ou pelo medo. 

E assim seguimos, alimentando uma cultura que acredita que é normal um cara passar a mão na bunda de alguém na balada, puxar o cabelo da garota, tomar vantagem da bebedeira para conseguir ficar com ela, que é banal ser encoxada num ônibus ou num vagão de metrô. E nada disso é diferente de dizer que mulheres existem para serem violadas.

Se você acha que a culpa de ser assediada, ou desrespeitada de inúmeras maneiras é da mulher, saiba: Culpar mulheres pela violência sofrida é sempre a primeira defesa de quem é mantenedor da cultura do estupro. Então, se nos dizem que a culpa é nossa, que roupa devemos vestir? Que peso devemos ter? em que táxi devemos andar? Em qual estação de metrô? Em qual vagão? Em qual cidade? Qual calçada? A que horas? A verdade é que não há roupa ou comportamento que nos liberte dessa opressão sobre o nosso direito de ir e vir. Outras calçadas, no fim, não nos protegem quando o verdadeiro problema é todo um modo de viver, toda uma compreensão distorcida de nossa identidade e de nossa humanidade.