Estética e futilidade: Uma associação fundamentalmente misógina medieval

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Aviso: Esse texto não tem de forma alguma a intenção de fazer qualquer tipo de julgamento, determinar a necessidade de uma preocupação específica ou desmerecer quem não a prioriza. O objetivo é exclusivamente destrinchar e compreender a participação da misoginia na formação do conceito de futilidade que temos hoje.
Quem tem essa mania de se enfiar em qualquer discussão do facebook às mesas de bar percebe facilmente uma crítica constante nas rodas de intelectuais, cults ou seja lá como a gente (se) chama: A aversão do culto ao corpo.
Usei essa expressão por ser deliberadamente a mais usada, mas na real, muito me incomoda o uso da palavra “culto”, pois não é exatamente disso que se trata. Essa crítica não se foca apenas na idolatria e nos possíveis males causados por uma visão unilateral (pelo contrário, ela por si só é uma visão unilateral), mas abrange todo o conceito de futilidade. Bem explicadinho é assim: Acredita-se que questões como a moda, estética e preocupação visual em geral, são vazias e vão na contramão do que seriam as verdadeiras preocupações sociais. Gostar e dedicar-se a tais assuntos seriam praticamente um atestado de falta de inteligência. Esse conceito de futilidade está disseminado a tanto tempo que nos parece plenamente natural, é uma verdade bem pouco questionada. Entretanto quando voltamos historicamente podemos perceber associações entre a argumentação moderna que sustenta essa afirmação e os dogmas medievais, o que elucida sua origem.
Embora tal conceito possa ser considerado de origem filosófica, precisamos considerar a ligação entre filosofia e igreja, um não está completamente emancipado do outro, especialmente se tratando da Idade Média. E foi nela mesma, a Era das Trevas, que se fixou a depreciação da preocupação estética.
A imagem do homem sábio está ligada a uma aparência desprovida de vaidade. A filosofia passa a dizer que o homem que deseja conquistar o mundo da sabedoria necessariamente se desprende da futilidade terrena que é visual. Essa mesma vaidade criticada aqui é condenada pela bíblia, apenas a nível de exemplo, em Levítico está escrito “Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba.” (19:27). Percebem como a aparência do homem sábio e a do homem de deus são próximas?
Sendo assim, a estética e a sabedoria são colocadas de uma maneira maniqueísta, são opostas. Enquanto a racionalidade é primordial, a estética é secundária. Junte a isso o fato de que a vaidade - e a estética em geral - vem sendo associada as mulheres desde uma historinha que não sei se vocês conhecem, na qual uma mulher é retirada, formada a partir da costela de um homem. Simbolicamente nessa versão da criação a mulher já vem como um pedaço, ou seja, sua essência é secundária, ela já é o próprio adorno.
Nesse contexto o conhecimento,  a razão e a filosofia são colocados como contrários e superiores a toda característica que está ligada ao conceito de mulher. A partir daí foi instituído o medo e a demonização do corpo, das formas e da vaidade.
Resumidamente, a futilidade, que foi conceituada com base em toda a construção bíblica do feminino passou a ser condenada socialmente. E é esse o vestígio que vemos até hoje em uma sociedade intelectualmente moralista que carrega consigo essa visão contraditória da sabedoria e da vaidade.
Para as mulheres restaram as piadas de loira burra. A loira, no caso, é apenas um exemplo do que seria bonito (o que explicita o padrão de beleza europeu vigente) e, consequentemente, fútil. Para os homens restou o diagnóstico de metrossexual caso manifestem preocupação estética afinal, como homens, suas mentes deveriam estar exclusivamente voltadas para o campo da razão.
E ainda acredita-se que neste campo da razão conhecimentos como moda e arte não são válidos, ou são menores do que os outros. Por terem essência estética são secundários e consequentemente ligados ao conceito bíblico de feminino e ao conceito medieval de futilidade.
Esses (pré)conceitos pautados na moral cristã se manifestam socialmente até hoje e são fortes motivos para julgamento. Além disso, se um campo do conhecimento é válido e o outro não, fica claro para qual “devemos” seguir para ter qualquer tipo de reconhecimento. Essa hierarquização é machista e extremamente castradora que não nos permite dar a devida atenção a nossa própria sabedoria e a direção na qual ela nos leva.
Como se precisássemos necessariamente escolher entre dois campos opostos: Corpos e artes ou razão e filosofia. Não precisamos. Não somos essa visão misógina, sólida e chapada dos seres humanos. Nosso conhecimento merece ser valorizado por si, pela atenção que nós damos a ele, pelo nosso desejo. Não pelo julgamento (ainda tão Velho Testamento) alheio.