Eu, balzaca e feminista

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Eu nem sei com qual rapidez os anos deslizaram por entre os meus dedos, mas sei que parece ter durado menos do que durou. Eu tenho 29 anos. Portanto, doente terminal. Apenas um ano de vida me resta. Ao menos é assim que o senso comum desenha mais um estereótipo sobre mim. Aos 30 anos, eu já devia ter uma família (monogâmica e heteronormativa) formada, estar casada, até poderia ter uma carreira, se também fosse mãe e esposa. A tal jornada tripla, o destino certo da mulher de 30 anos. Minha beleza, já deteriorada pelas primeiras marcas do tempo (uma ruguinha aqui, cabelo branco ali, seio caído acolá), não é mais admirada. A juventude é parte inseparável daquele padrão de beleza do qual sempre falamos aqui no blog. Aos olhos da nossa sociedade machista, a beleza é o bem mais precioso que uma mulher carrega, sem ela, não existimos. Com ela, existimos apenas para deleite masculino.

Enquanto mascus bradam por aí que a vida deles começa aos 30, a minha deveria estar no fim. Sambando na cara da sociedade, nunca me senti tão bem comigo mesma quanto agora. Ok, há problemas aqui e ali, mas somente agora começo (sim, COMEÇO) a me entender mais claramente e a amar a pessoa que sou, ou ao menos a pessoa que me tornei. Importa bem pouco para mim a tal da ruguinha. A verdadeira mudança que vejo na pessoa que sou e naquela que fui veio de dentro. E é incrível como aconteceu em pouco tempo.

Balzac, em seu famoso livro, dizia:

"Uma mulher de trinta anos tem atrativos irresistíveis. A mulher jovem tem muitas ilusões, muita inexperiência. Uma nos instrui, a outra quer tudo aprender e acredita ter dito tudo despindo o vestido. (...) Entre elas duas há a distância incomensurável que vai do previsto ao imprevisto, da força à fraqueza. A mulher de trinta anos satisfaz tudo, e a jovem, sob pena de não sê-lo, nada pode satisfazer". 

Sobre essa citação, como diria Raul Seixas, eu acho tudo isso um saco. Uma mulher de 30 anos não é diferente de nenhuma mulher. Ficar categorizando quem é melhor e quem é pior não faz bem a nenhuma de nós. O que nos difere não é a nossa idade, são experiências pessoais que podem ou não interferir na nossa vida individualmente e não coletivamente. E é nesse ponto que o feminismo fez a diferença na minha vida: 
Eu preciso do feminismo para que a sociedade entenda que minha vida não acaba aos 30 anos.

Aos quase 30 anos, eu olho para trás e vejo como fui tola em ter sido calma, quieta, submissa, calada, opressora comigo mesma e com outras mulheres. E nem tem tanto tempo assim. Eu costumava dizer todas aquelas coisas absurdas contra as quais eu luto atualmente. Por exemplo: Eu dizia que as mulheres deveriam se dar ao respeito, que é muito feio mulher que bebe, e, o pior de tudo, havia momentos em que eu dizia até mesmo que se a mulher apanhou, fez por merecer. A minha falta de empatia por outras mulheres resvalava num pedido de aceitação dentro dos grupos em que eu andava. Grupos predominantemente masculinos. Não é que esses assuntos fossem exaustivamente discutidos em nossos encontros, mas há um machismo que paira sobre algumas cabeças e que acaba contaminando a todos, de formas e intensidades diferentes. A objetificação é só uma das facetas desse machismo que se revela em um ou outro comentário. Aqui e ali, meio encoberto por uma conversa casual sobre qualquer coisa, não necessariamente sobre a questão de gênero. E assim, lentamente, eu me deixei levar.

Aliás, eu demorei demais para me dar conta do quanto eu fui colonizada. Eu realmente sou uma pessoa tímida, mas o meu silêncio quando estava com eles não era timidez, era só silêncio. Lembro-me que uma amiga, que a eras me conhecia, me disse naquele momento da minha vida que a minha luz tinha apagado, que eu estava sempre calada. Na época eu compreendia a verdade naquelas palavras mas não conseguia identificar quais processos me levaram à esse comportamento. E posso dizer sem sombra de dúvidas, observando o meu passado, que foi a minha aproximação com homens. Não todos, vale frisar. Há no meio desse grupo grandes amigos, mas mesmo entre as pessoas que mais amamos existe uma coisa chamada "comportamento de grupo", que por vezes se manifesta. E dentro desse comportamento de grupo masculino a opressão às mulheres (e ao feminino de forma geral) existe. 

Caminhando rumo aos 30 anos posso me congratular, sem pedantismo, de ter sido capaz de mudar minhas opiniões. Tive ajuda nisso. Mesmo assim, não é fácil conseguir soltar as amarras culturais que nos são impostas, especialmente quando sabemos que o preço a ser pago é alto. Perdi grande parte dos meus amigos, tenho medo de fazer uma entrevista de emprego e alguém consultar as redes sociais, espaço que uso para entretenimento mas também para uma militância contínua, e é claro que existem os haters.

Algumas coisas aconteceram na minha vida para que eu pudesse sair do meu estado vegetativo. Eu conheci um grupo de mulheres que embora não se definisse ainda abertamente como feministas, foram de grande importância para a construção não só do meu feminismo como também o delas. Construimos uma identidade coletivamente. Somado a isso, uma tragédia também aconteceu dentro da minha família, com uma prima minha, um caso extremo de violência que resultou na sua morte. Todas aquelas mulheres que apanharam do marido ficaram para sempre ligadas à mim por meio dessa história. Eu entendo a dor de seus familiares, eu entendo. Eu entendo agora que nada poderia justificar o que aconteceu com elas. Eu vejo a Carminha apanhar na novela e sinto um nó se formar em minha garganta. Eu queria poder dizer que mudei unicamente com a minha força de vontade, com o meu próprio discernimento, mas isso não é possível, fatores externos à mim me esbofetearam na cara até que eu entendesse o quanto era prejudicial o discurso que eu sustentava até então. 

E é por isso que eu não consigo simplesmente culpar as mulheres machistas pelas barbaridades que falam, talvez nem elas entendam o quanto aquelas palavras recaem sobre si. Às vezes não acho a paciência necessária para lidar com elas, mas não as culpo. Alguém, em algum momento, me estendeu a mão para me fazer entender o que acontecia comigo. E por diversas vezes eu rechacei as palavras que me foram ditas. Ainda urgia em mim a necessidade de aceitação de uma sociedade que, eu ainda não sabia, nunca iria me aceitar de maneira plena, unicamente porque sou mulher. Mas um dia, eu entendi e estou aqui construindo e desconstruindo o que eu fui e o que eu sou. A cada dia, a todo momento. 

Eu não sei o que será de mim após a marca dos 30, mas aos 29 eu estou muito melhor do que estava antes. Se não estou livre por completo, estou lentamente me dirigindo à minha liberdade. E estou gostando muito. Que venham os 30.