Garnier, a nossa receita é uma resistência a você

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Eu ainda vivia na Índia quando percebi, meio que pela primeira vez, a agressividade da marca Garnier. Fiquei a matutar sobre os aspectos imperialistas que permeavam a propaganda que eu tinha diante de meus olhos. No comercial em questão, uma modelo aparecia se recordando da sua infância, de um tempo em que sua mãe lhe dizia algo como "uma boa garota faz umectação antes de cada lavagem". 


Cabe aqui um breve parêntese: quem sabe um pouquinho de Índia tem noção da importância dada ao uso de óleos nos cabelos. Há uma variedade de óleos para os mais diversos problemas, sendo que o óleo de coco é considerado por lá o mais básico e essencial para cuidados de rotina. O uso do óleo de coco como um pré-shampoo é uma tradição da qual as indianas se orgulham muito. 


Pois bem, voltando ao comercial. Após se lembrar da tal infância, a modelo fala algo como "mas cadê o tempo?", e o que se desenrola é uma explicação de como a maravilhosa marca garnier, que unira shampoo e óleo no mesmo produto, seria a saída para todos os problemas do universo. Seguem algumas tomadas, com modelos curtindo a vida e seus cabelos esvoaçantes (e bem photoshopados), dando a entender que elas só teriam a ganhar com a praticidade do produto. Até que chega o momento que eu achei particularmente tenso e agressivo: a modelo principal (do início do vídeo) destrói os vidros de óleo com um estilingue. O link do vídeo pode ser encontrado aqui


Iniciei meu texto com essa historinha porque foi exatamente dela que eu me lembrei quando, dois anos depois (ou seja, ontem), me deparei com um comercial brasileiro da marca garnier, estrelado por Dani Calabresa (o comercial em questão já conta com mais de 1 milhão de visualizações no youtube). E o que ficou claro pra mim, ao assistir o tal comercial? Exatamente, a agressividade da marca. Vou tentar expor o que eu penso a respeito disso. 


Uma coisa que todas as pessoas sabem acerca do capitalismo é que ele age movido pelo lucro. Única e exclusivamente, lucro. Acho que todo mundo tá ciente disso, inclusive comentários do tipo "ahh, isso é marketing! Marketing é assim mesmo!" denunciam que a galera sabe que é assim que o capitalismo, representado com maestria pelo seu amigo e braço direito - o marketing - consegue sobreviver. O que fica menos claro, dada a sua sutileza, é a forma que o capitalismo encontra de se fixar e soar natural e até útil, na vida das pessoas. Se o marketing é seu braço direito, o utilitarismo é seu mascote. Através do utilitarismo, o capitalismo consegue reforçar e, porque não, cimentar o discurso da praticidade na vida das pessoas. 


E de onde vem, necessariamente, esse discurso da praticidade? Pensemos na marca, especificamente.
Não podemos nos esquecer que se trata de uma multinacional, subsidiária da L'oreal. É uma gigante da indústria de cosméticos, cujas cifras (mi? bi?) lionárias eu nem consigo imaginar direito. Uma coisa, entretanto, é certeira: como uma empresa que atua em escala global, a marca precisa entender a dinâmica dos mercados locais para conseguir sobreviver. É óleo que as indianas querem? Daremos óleo a elas! Mas… como fazer frente a uma prática milenar já consolidada, com marcas que antecedem a Garnier e possuem um apelo local e familiar que a Garnier não tem? Ora, é simples: com uma postura imperialista. Nós, dessa multinacional que se instala em todos os lugares para obter lucros desmedidos, estamos aqui para salvá-las de práticas retrógradas e primitivas. Nós representamos a modernidade eurocêntrica que prega a primazia da praticidade na vida das pessoas. Nós somos a modernidade que destrói a cultura local. Com um estilingue. 


E o que o discurso da praticidade faz? Bom, ele estabelece o binário bom x ruim. E o ruim, gente, é sempre a prática 'retrógrada' e 'tribal' de quem não tem a pele branca. Por exemplo, é ruim ter cabelo crespo, pois cabelo crespo não seria prático. Ao que fica a pergunta: por que precisamos tanto assim de praticidade? Porque simplesmente não passa na cabeça desses imperialistas que alguém possa curtir passar um tempo se cuidando. Porque tempo é precioso demais, pois você precisa ser produtiva (ou seja, gerar dinheiro pro sistema), ou então, como no caso das propagandas, ter mais tempo para se divertir - e cuidar dos cabelos não seria uma diversão. 


Na propaganda da Garnier brasileira, essa dinâmica da praticidade fica muito clara. A Garnier precisa passar por cima de toda uma prática que é consolidada no Brasil, ou seja, as famosas receitas caseiras para cuidados capilares, para se reafirmar enquanto marca. A Garnier precisa se utilizar de blogueiras famosas que, em toda a sua ingenuidade, aceitaram de bom grado fazer um comercial que vai contra tudo aquilo que elas construiram (eu acompanho a Rayza Nicácio e ela sempre enfatizou cuidados em casa para os cabelos). E as fãs seguidoras da Ray e demais blogueiras que se indignaram com a tal propaganda (meu caso) foram acusadas de inveja. "Vocês queriam estar exatamente onde ela está, ou seja, ganhando dinheiro!" Porque, vejam bem, no mundo de hoje, o mercado suplanta princípios. E reclamar de alguém que se converte à lógica do lucro a todo custo te coloca, automaticamente, na posição de herege. 


Imagem tirada da page do Blog Cantinho da Nanda - Vejam como a Garnier faz chacota com a receita dela, em um tom bem agressivo. 
O cenário é desolador. Mas, há esperança. Há vozes, ainda que escassas, que se opõem a essa lógica mercadológica e utilitarista. Há um movimento que diz em alto e bom tom que as nossas receitas caseiras NÃO serão trocadas por um produto industrializado de qualidade duvidosa. Nós estamos aqui, na Índia, em todos os lugares em que essas práticas imperialistas esdrúxulas acontecem. Oferecemos resistência a essas práticas. Estamos aqui lutando para que os cabelos crespos não sejam sinônimos de ressecados, como a Dani Calabresa quis enfatizar (e o cabelo da Ray é hidratado e muito bem cuidado, diga-se de passagem). Estamos aqui para dizer que a nossa identidade não está à venda, tampouco é negociável. Se uma, duas, ou várias blogueiras não perceberam isso, é porque está na hora de lutarmos ainda com mais empenho.