Guestpost: Desmontando um falso argumento: "Só quem já nasceu é a favor do aborto"

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Em tempos onde os direitos humanos das mulheres são considerados moeda de troca na construção de um documento internacional, Henrique Marques-Samyn escreveu um excelente texto que toca num dos componentes do "direitos reprodutivos e sexuais", o direito da mulher de decidir quando e quantos filhos quer ter e ao direito a opção do aborto seguro.

"Obrigada mãe, eu nasci", uma variação do falso argumento.
Qualquer um pode ser contra o direito ao aborto (com uma ressalva: ninguém é "a favor do aborto"; as pessoas são a favor, ou contra, o direito de a mulher receber auxílio médico para interromper a gravidez). Mas uma discussão razoável exige bons argumentos. Dizer que "só quem já nasceu é a favor do aborto" não é apresentar um argumento, e sim uma frase de efeito falaciosa.

Em primeiro lugar, analisemos o "argumento" como está formulado. O que quer dizer? Que só quem já nasceu pode ter uma posição favorável à descriminalização do aborto (a propósito, faria mais sentido substituir o "só quem já nasceu" por "só quem está vivo", mas isso acabaria com o jogo de palavras presente no "argumento"). Ora, isso quer dizer algo óbvio: que só quem nasceu (= está vivo) pode ter opiniões. Nada mais evidente: quem não nasceu pode ser contra ou a favor de alguma coisa? Quem não tivesse nascido poderia ter algum tipo de opinião? E quem não está vivo, um morto, pode ter opinião? Isso já basta para demonstrar que não estamos tratado de um argumento consistente.

Por outro lado, há quem use aquele "argumento" para sugerir que apenas quem teve o "direito de nascer" é contra esse mesmo direito, quando se trata de outras pessoas. Nesse caso, o pressuposto é que os pró-escolha agem hipocritamente, interrompendo a vida de outros, cerceando o seu direito. Mas as coisas não são bem assim. Aqui, cabe um esclarecimento prévio, e bastante simples, acerca da posição de quem defende o direito à interrupção da gravidez com auxílio médico: assim como se considera cientificamente que a morte cerebral indica o fim da vida, entende-se que a vida humana surge quando se forma o cérebro; isso só ocorre após as primeiras doze semanas, quando se desenvolve o sistema nervoso do feto. Na maior parte dos países nos quais o aborto é legalizado, a interrupção é permitida nessas primeiras doze semanas, antes que seja possível a formação do cérebro ? logo, antes que seja cientificamente possível falar em vida humana. Não há, portanto, nenhuma vida sendo interrompida.

"As mulheres decidem, a sociedade respeita, o Estado garante, as Igrejas não intervem.
Educação Sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar, aborto legal para não morrer."
Vale dizer que, na verdade, quem é pró-escolha é, sim, a favor da vida: a favor da vida das mães e das mulheres, em primeiro lugar. Aqui, passamos a tratar de fatos: a criminalização do aborto não evita o aborto; apenas obriga a mulher a realizá-lo na clandestinidade. Sabe-se que o aborto ilegal é a terceira causa de morte materna no Brasil. São essas pessoas que os pró-escolha buscam defender, assegurando-lhes meios seguros e adequados para a realização de práticas que já fazem parte da realidade brasileira, independentemente da proibição do aborto. Com a criminalização do aborto, a situação em nosso país é a seguinte: mulheres ricas têm meios financeiros para interromper uma gravidez indesejada em maternidades de luxo (por um altíssimo custo, devido à ilegalidade); mulheres pobres recorrem a clínicas clandestinas, que realizam o aborto em condições inadequadas. A Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2010 pela Universidade de Brasília (UnB) com o apoio da Agência Ibope Inteligência e do Ministério da Saúde, revelou que uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já realizou ao menos um aborto na vida. São 5 milhões de mulheres. Seu perfil? Essas mulheres já são mães (81%), são casadas (64%) e são religiosas (pouco menos de dois terços são católicas; um quarto, protestantes ou evangélicas).

Por fim, cabe ressaltar que o principal pressuposto de quem defende o direito à escolha é que a mulher tem o direito de lidar com a própria gravidez de acordo com suas crenças e convicções. Se o aborto for descriminalizado no Brasil, uma mulher religiosa pode jamais sequer considerá-lo como uma opção para si, caso esse lhe pareça o modo correto de agir, conforme suas crenças; esse direito lhe será assegurado. Mas, numa sociedade democrática, não se pode obrigar uma mulher que não é religiosa a agir segundo os dogmas de qualquer religião ? e esta é a situação na qual nos encontramos atualmente. Em outras palavras: a descriminalização do aborto só tenciona permitir à mulher que exerça sua autonomia, conforme seus próprios princípios. Seu corpo, suas regras!

Henrique Marques-Samyn, (@marques_samyn), escritor e professor da UERJ.