Guestpost: Feminismo e cultura pop: Parte 2 – Mulheres como jogadoras

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Olá (novamente), pessoal do Ativismo! Me chamo Taís e sou a blogueira do Colchões do Pântano. No blog, um dos meus objetivos é analisar mídias de entretenimento como games, quadrinhos e séries sob a ótica feminista. No primeiro post, o tema foi as representações femininas tanto nos jogos quanto nas HQ's. Agora o foco será sobre o tratamento que muitas mulheres recebem dentro da cultura nerd/geek/gamer em geral.

Talvez por eu ter me inserido nesse universo com força há poucos anos, já passei por preconceito algumas vezes, mas nada tão gritante em comparação aos depoimentos que jogadoras (principalmente as gringas) já deram por aí. Inclusive, parece que existe uma espécie de dicotomia: enquanto alguns jogadores as desprezam e inferiorizam com todas as forças, outros quase as idolatram e, em casos ‘extremos’, as assediam sem qualquer pudor. Alguns exemplos dessas situações:

1) Jogos multiplayer online. Só de olhar o nick e/ou avatar de alguma jogadora, desconhecidos mandam mensagem dizendo frases como “volta pra cozinha e me faça um sanduíche” ou “gata, tenho um pau grande e quero te comer”. Esse tipo de assédio também acontece quando elas se atrevem a falar pelo microfone, principalmente em jogos de tiro em primeira pessoa. No site Fat, Ugly or Slutty temos VÁRIOS exemplos.

2) Se disfarçar de homem, obviamente pelo motivo de cima. Desligar o microfone e mudar seu avatar/nick para masculino não só te poupa de tudo isso como evita que você seja expulsa (ou, no caso de jogos com friendy fire[1], morrer na mão do seu grupo) de partidas online.

3) Surpresa por você gostar de jogos e entender do assunto. Lembro muito bem de quando eu estava conversando com um cara e mencionei o fato de Portal 2 ter concorrido ao GOTY[2] de 2011. A reação dele? “Não tenho preconceito, mas uma menina saber o que é GOTY? Wow!”. Nem precisa explicar o tamanho da babaquice de se dizer isso, certo?

4) Itens raros de presente. Em multiplayers, principalmente RPG’s online, é bastante comum homens darem de bandeja presentes para personagens femininas não porque elas são bacanas ou porque sabem jogar super bem, mas simplesmente por serem mulheres. Depois de assédio, essa é a segunda maior cuspida na cara por mostrar a gritante diferença de tratamento, afinal elas não têm autonomia o suficiente pra conseguir esses itens/dinheiro virtual sozinhas! Homens também aproveitam tal comportamento se fingindo de mulher pra ganhar tais “benefícios”.

5) Seu argumento é inválido. Se você está dando sua opinião sobre um jogo/HQ/filme e é mulher, principalmente se for pra reclamar daquela roupa minúscula de uma super heroína, será automaticamente desprezada (especialmente se você não for atraente na visão deles). Mulher se metendo em assunto de homem? Sai fora! Isso nem foi feito pra você!
Outras pérolas e argumentos do tipo podem ser vistos no bingo de sexismo nos jogos.
6) Comprar pra você? Nãããão. Se você vai numa loja física comprar aquele jogo/HQ que tanto esperava, vão te tratar não como consumidora do produto, mas alguém que está comprando pro irmão/primo/amigo. E ainda pode ser assediada. Esse e vários outros problemas citados também estão no texto Nerds e o privilégio masculino.
7) Sua poser! Attention whore! Esse tópico renderia inúmeras discussões. A grosso modo, é quando uma mulher se atreve a se chamar de nerd, geek e/ou gamer e age/conhece/gosta de coisas de uma forma diferente do que é dito pela bíblia imaginária dessas tribos sobre como elas deveriam se comportar pra serem de verdade. Não gosta de Star Wars e se diz nerd? É poser! Tem o cabelo colorido, joga Super Mario, usa uma camiseta do Pikachu e se diz nerd? Poser, óbvio. Nerd de verdade é feia, espinhuda, (possivelmente) gorda, não tem vida social e usa roupas sem graça, tipo aqueles que viveram nos anos 80. É bonita e diz que gosta de jogos? Só quer chamar atenção, lógico. Posou com um joystick na boca? SUA VADIA! Ou ainda, te fazem perguntas pra testar seu conhecimento e terem certeza que você é nerd ou não. Você não vê esse tipo de questionamento voltado para homens.

Cagação de regra? Estereotipagem? Nãããão, imagina!

Todo mundo aqui sabe que quando uma mulher decide tratar seu corpo como seu e usando roupas curtas, decotes e similares, rapidamente aparecem os cagadores de regra pra contar direitinho a ela a diferença entre ser sexy e vulgar. Se você for sexy, vão te amar e enfatizar do quão é linda e gostosa; se for vulgar, vão te chamar de vadia ou usarão um termo exclusivo da tribo: pirinerd. E poser, naturalmente.

Ainda assim, reconheço que nem tudo são flores: Muitas mulheres internalizaram concepções machistas; não apenas em fazer slut-shaming com as outras, como também em “se objetificar” porque aprendeu que deve ter uma aparência agradável pros homens héteros a aceitarem e a valorizarem. Mesmo se ela jogar bem ou tiver um amplo conhecimento do que gosta – sua aparência sempre será colocada em primeiro lugar. Existem até mesmo sites enfatizando isso ao fazerem compilações de imagens com mulheres nerds sexy.

Peraí, agora você está sendo hipócrita! Por que elas podem ser gostosas sem problema algum, mas as personagens femininas de jogos e/ou HQ’s não?

Vamos fazer uma analogia. Pense numa mulher com os peitos à mostra na Playboy, depois pense em outra na mesma situação na Marcha das Vadias. O contexto e objetivos são iguais? Absolutamente não. Essas gostosas mostradas na mídia de entretenimento não seriam realmente um problema se:

- Elas não fossem o padrãocomo representação feminina;
- Elas não tivessem seus corpos distorcidos para parecerem mais atraentes (leia-se: hiperlordose lombar, coluna vertebral elástica, ausência de órgãos internos);
- Elas não fossem criadas para serem objetos e realizarem fetiches dos seus criadores;
- Elas não fossem tratadas como peitos e bundas ambulantes.

Assim, não é nenhuma novidade você se deparar com textos que soltem pérolas como essa: "Ok, agora mãos à obra. Vamos ajudar os quadrinhos, tentando trazer mais mulheres até eles. O pior que pode acontecer é deixarmos o mercado mais bonito”. Porque é isso que realmente importa, sabe? Sermos enfeites. Ou produtos, como as booth babes são tratadas.

Agora vamos falar sobre algumas mulheres em específico que têm ou tiveram destaque na mídia. Ano passado, um grupo de garotas publicaram o vídeo Game Girl Manifesto. Em dois minutos, elas passam uma mensagem perfeitamente clara: julgá-las pelas suas habilidades, não por serem mulheres. Elas estão aí pra jogarem. E no final dizem “Don't be racist. Don't be homophobic. Don't be sexist”. Se você tiver estômago pra ler comentários, verá que muitos odiaram o vídeo e, lógico, aproveitaram pra vomitar preconceito.

Já outro caso mais recente é sobre Anita Sarkeesian. Ela é dona do blog Feminist Frequency que criou a web série Tropes VS Women (com legendas em português), em que ela discute a qualidade das representações femininas na cultura pop. Anita se tornou extremamente popular quando começou um projeto no Kickstarterchamado Tropes VS Women in Videogames. Como você pode ver, sua intenção inicial era juntar 6 mil dólares, mas conseguiu 158 mil! Como já esperado, ela recebeu inúmeros ataques de trolls, inclusivemensagens e montagens misóginas. Fizeram até mesmo um jogo em que você a espanca e seu rosto vai se deformando a cada batida. Depois disso, não há desculpa pra disfarçar o tamanho da nojeira que existe nessa cultura.  Maiores detalhes estão neste post do Arena.

Além disso, uma mulher chamada Katie Williams contou neste post do Kotaku Austráliao que aconteceu quando ela foi à E3[3] deste ano. Ao reservar uma hora e meia para experimentar a continuação de um shooter militar conhecido, um cara das Relações Públicas que deveria estar ali pra auxiliar não acreditou que ela saberia jogá-lo por si e, pasmem, pegou o teclado sem pedir nem nada e disse que iria jogar no lugar dela! E não acabou por aí: em outras situações durante o evento, ela foi bastante subestimada, afinal de contas, garotas não entendem muito desse material, sabe? Ela também aponta uma questão interessante quando diz:

“É inacreditável que isso esteja acontecendo. Se esta é a forma que as pessoas de Relações Públicas se sentem sobre a capacidade das mulheres, não é à toa que a parte promocional dos jogos seja tão sexista. Não é à toa que as pessoas de marketing achem que está tudo bem até certo ponto ter um trailer em que um homem ataca um bando de freiras sexies, não é à toa que estamos vendo isso se espalhar entre desenvolvedores, que colocam achievements[4] no jogo pra olhar debaixo da saia de uma mulher com 19 anos vestida feito colegial[5]. Não é à toa que estamos vendo isso acontecer com os jogadores, que falam às mulheres entre nós que elas provavelmente não podem saber sobre os jogos online que jogam”.

Finalmente, deixo um convite pra vocês participarem do grupo que criei no Facebook cujo objetivo é justamente analisar elementos da cultura pop sob o ponto de vista feminista. Textos em inglês sobre a questão são suficientemente fáceis de achar, tanto que alguns blogs que conheço e têm essa abordagem em menor ou maior grau são: The Mary Sue, Go Make me a Sandwich, Gaming as Woman, The Border House e Geek Feminism. Infelizmente, eles são raros em português.
Obrigada por lerem até aqui e espero que as informações tenham sido úteis!

[1] Fogo amigável. É quando você pode ferir seus aliados e, dessa forma, torna o jogo mais difícil. O problema desse recurso é quando aparecem babacas que gostam de prejudicar os outros puramente por prazer.
[2] Game of the Year. Título dado por várias publicações especializadas (como revistas e sites) para um jogo que se destacou em seu ano de lançamento. Skyrim, por exemplo, foi um dos mais votados. Além disso, os indicados ao prêmio são divididos em várias categorias, tais como Melhor Jogo de PC, Melhor Multiplayer, Melhor RPG etc etc.
[3] Electronic Entertainment Expo. É um importante evento internacional em que empresas de jogos mostram novidades como prévias de futuros lançamentos de games e informações detalhadas de consoles e portáteis da nova geração.
[4] Um “prêmio” simbólico de quando você realiza um objetivo específico, geralmente com o intuito de ser difícil de completar. Por exemplo, resolver um puzzle em 1 minuto, ou matar 50 inimigos sem morrer.
[5] Ela provavelmente está se referindo à Juliet de Lollipop Chainsaw, que na verdade estaria especificamente vestida de cheerleader.