O eterno mito das mulheres incompletas

Escrito en BLOGS el
Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta.

A mídia e toda a sociedade trata as mulheres como se fôssemos completamente dependentes da opinião masculina e do desejo masculino. O pensamento vigente é que uma mulher só pode ser genuinamente feliz se acompanhada de um homem que a deseja.

As expressões "mal amada" e "mal comida" são bons exemplos de como a sociedade insiste em colocar como o desejo principal da mulher o relacionamento com um homem. Mulheres que desafiam a norma e fazem parte de movimentos sociais, como o feminismo, são constantemente atacadas por essas ofensas. Ofender uma mulher com essas expressões é afirmar que toda reclamação, revolta, luta dela só existe porque ela não tá ocupada sendo feliz com um homem bom, sabe? Como se qualquer revolta feminina fosse fruto da falta de despertar desejos masculinos, na falta de amor e não no fato de que nosso gênero é constantemente diminuído, oprimido, desrespeitado e violentado.

E ainda tem o fator de que condicionar a felicidade feminina aos homens dessa forma, colocar essa preocupação de atrair o desejo masculino, de buscar a qualquer custo um namorado, como algo feminino é mais uma vez reafirmar a suposta inferioridade feminina. Afinal, numa sociedade que separa as pessoas entre racionais e emocionais, como se apenas as racionais tivessem o seu valor, dizer que mulheres precisam de homens para serem felizes é dizer que mulheres são fúteis, são irracionais e etc. Tanto a Paula, quanto a Gizelli, já trataram sobre o assunto.

Se você é mulher e está fora dos padrões de beleza (ou seja, praticamente todo mundo), você já deve ter ouvido algum "elogio" como: "Ah, tem homens que gostam de *insira aqui a característica sua que difere do padrão de beleza*", como se noticiar que você pode ser atraente para um homem fosse fazer sua autoestima se reerguer das cinzas. Como se a remota esperança de que algum dia você pode despertar o desejo masculino fosse uma dádiva. Como se somente a possibilidade de atrair os olhares masculinos fosse capaz de fazer uma mulher se sentir bem. E ainda tem o fator de que toda decisão feminina, seja mudar de emprego, seja cortar o cabelo ou vestir uma roupa diferente, conforme a sociedade, é condicionada ao que o homem vai acha daquilo, como se mulheres não fossem donas de seus corpos e de suas vidas e precisassem sempre de alguém pra guiá-las ou mesmo como se a gente precisasse sempre pensar em agradar o parceiro acima de agradar a si.

Não posso ser a mulher da sua vida
porque sou a mulher da minha.
A cultura de que somente acompanhada de um homem uma mulher pode ser feliz e tem valor fomenta uma série de coisas: A mulher é considerada a responsável por fazer o relacionamento dar certo, porque para o status quo é ela que precisa de manter aquela relação e isso enseja dependências emocionais, uma certa obrigação de se submeter ao que o parceiro deseja e etc.
A sociedade trata a mulher como a maior interessada, às vezes até mesmo como a única interessada em manter um relacionamento, afinal, o modelo tradicional de relacionamento coloca o homem  como provedor (atualmente, o principal provedor, né?) e a mulher como a pessoa que depende do outro, a pessoa que consome e quer sempre consumir. Além disso, há também o fato de que os homens são positivamente vistos se tem várias mulheres, se fazem muito sexo, e as mulheres se fazem muito sexo, são consideradas vadias, que é um termo ofensivo se não ressignificado. O homem continuar solteiro é algo positivo, até porque se ele adiar o casamento, mesmo ao envelhecer será visto como mais sábio e charmoso, enquanto a mulher solteira é vista como mal amada, "ninguém aguentou" e que só tem valor se é jovem e dentro dos padrões estéticos. Todos esses pontos relacionados ocasionam naquela camisa famosa e muito vendida onde o casamento para o cara é o game over e para a mulher é sinônimo de felicidade e naquela famosa piadinha que diz que o cara casa de terno preto porque tá de luto pela vida de solteiro, pelas mulheres que não são mais "dele" e etc.

Outra coisa é que tratam tudo que uma mulher faz como se fosse algo para chamar atenção dos homens: a roupa que ela usa, o corte de cabelo, se usa salto ou não. Tratar nossa vida como se o objetivo dela fosse despertar o desejo masculino faz com que cantadas de rua sejam consideradas algo "simpático, um elogio", sendo que elas são invasivas e não desejadas; Gizelli aprofundou muito nesse ponto aqui. O vínculo desse comportamento de assédio nas ruas é fácil de se perceber quando a gente pega nossas experiências e vê que se a gente tá acompanhada de um homem, as "cantadas" acontecem com menos frequência; o que mostra que  se a gente tá acompanhada de um homem, a gente tem "dono", nosso corpo não está mais disponível.

Sou alérgica ao patriarcado
E por fim, destaco o quão heteronormativo é fazer essa vinculação. Tratar as mulheres dessa forma é ignorar que lésbicas existem e que lésbicas são mulheres. É compactuar para a invisibilidade lésbica e para que as mulheres que se relacionam com mulheres sejam tratadas como fetiches masculinos e não como donas de sua sexualidade.

E ainda vejo uma possibilidade de questionamento, para o meio feminista, sobre o assunto: Aquela famosa frase "homem feminista é sexy" talvez carregue um pouco desse mito e seus desdobramentos. Eu já usei essa frase, muita gente que eu admiro já usou a frase, mas nem por isso a gente não deva questioná-la, né? Afinal, o uso dessa frase coloca o homem feminista como um cara que merece mais atenção que os outros, ser considerado sexy, atraente seria um prêmio para a pessoa, sabe o confete que alguns caras acham que merecem por serem legais com mulher? Então, o homem feminista ser visto como sexy é uma forma de jogar confete, sendo que respeitar mulheres como pessoas é uma obrigação. 

Sei que essa frase também é uma forma de combater pensamentos como que o homem deve ser rude, grosso e sistemático, que tem que "mandar na mulher" e todos os desdobramentos desse pensamento, mas acho que vale a pena a gente refletir.

Por que atrair atenção dos homens para o feminismo falando de sensualidade e não em direitos de fato, sabe? Por que valorizar tanto o apoio dos homens ao movimento? Será que usar essa frase não fortifica o mito de que homens estão sempre interessados em sexo e mulheres em outras coisas, como se o sexo para as mulheres dependesse sempre de outros fatores mais "teóricos"? Será que essa frase não reafirma a dependência feminina? Será que essa frase não supervaloriza a participação masculina num movimento que deveria se focar principalmente nas mulheres?