"O feminismo não me convence"

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Porque né, direitos humanos agora é uma questão de convencimento. 

Todas repete com Rachel: Oi q?

Sabemos que nossa luta sofre uma tentativa de silenciamento a cada vez que abrimos a boca ou as redes sociais para protestar contra alguma coisa.

Porém, tem saltado aos olhos uma nova face do conservadorismo que eu não havia percebido, talvez pela lerdeza que me é característica: trata-se da galera do “me convence”.  Essa nova modalidade de comentaristas não chega a ser troll, porque o teor daquilo que falam não é necessariamente odioso.

Entretanto, a galera do “me convence” possui traços em comum que nos permite agrupá-los em uma mesma categoria de opinadores. Trata-se de gente que acredita piamente que é natural privar as pessoas de suas liberdades individuais (desconfio que elas só dizem isso ou por não estarem privadas das mesmas, ou então por se encontrarem num grau tão gigantesco de alienação que nem se dão conta do próprio cárcere). Mas não se enganem. Essa modalidade não se manifesta apenas nos blogs, embora tenham encontrado nestes e em demais redes sociais um habitat extremamente favorável à sua ânsia por falar mais alto em qualquer discussão. Ad nauseam.  

Um fato que eu acho extremamente curioso é que essas pessoas jamais se atreveriam a discutir, questionar e duvidar de alguma teoria científica num sentido estritamente positivista comteano do termo. Em outras palavras, o olhar dessas pessoas é tão treinado que elas não consideram importante tentar entender o porque das coisas existirem. "O mundo é assim e não vai mudar" parece ser a única explicação concebível para essas pessoas. Imaginação e tentativa de problematizar a realidade seriam desnecessárias. A necessidade de concretude é tanta que a pessoa, ao ler sobre ideologias, status quo e formações discursivas diversas, surta.

É com tudo isso em mente que eu enumero algumas características da geral do “Me convence”:

1. Rebuscamento de palavras: são capazes de proferir clichês tais como “lugar de mulher é na cozinha” sem utilizar nenhum dos vocábulos do clichê que defendem. Frases extensas, bem estruturadas e com uma pretensa aura de neutralidade dão o tom da postagem. Se acham OS e AS originais por defenderem “valores” excludentes de uma época que envergonharia até minha bisavó (que o universo a tenha).

2. Alguma ofensa. Não, um indivíduo “me convence” padrão jamais irá xingar. Mas vai tentar insultar, geralmente utilizando palavras como “desinteligente”, “desnecessário”, “inútil”, “ingênuo”, “irrelevante”. Lembremos que a intenção é silenciar, e nada mais tentador que desqualificar um texto com um “essa discussão é irrelevante”. Clamam que somos pessoas inteligentes e que, doravante, não deveríamos estar queimando neurônios com assuntos que não importam. É válido repetir aqui que tais assuntos, geralmente, dizem respeito a direitos humanos. Questionar uma piada que ridiculariza alguma minoria? “Desnecessário”. Falar de uma propaganda que claramente desrespeita as mulheres e endossa a cultura do estupro? “Desinteligente”. Celebrar que uma mulher se empodera discursivamente ao falar de sexo numa sociedade que sutilmente invisibiliza a sexualidade feminina? “Não vale o gasto de neurônios filosóficos”.

3. Ofendem-se. O grau de ofensa é variável, mas geralmente a pessoa vem, te chama de burra, surda (é sério), ingênua. Ou então diz que aquilo que foi escrito é irrelevante, não vale a pena, é desnecessário. Ou então você faz um texto inteiro tratando de obstetrícia e a pessoa bate o pé que você deveria ter falado era de astronomia. Daí você faz o quê? Responde, ué. Educadamente? A pessoa ofende. Com ironia? A pessoa ofende. Daí você se cansa e manda a pessoa abrir um blog pra falar as merdas que ela quiser? Falta de respeito. Nessas horas fica bem claro que elas fazem questão de ter direito ao respeito, à revelia de todo um claro desrespeito aos direitos das mulheres que, olha só, também são seres humanos! Justificam o preconceito e a hierarquização de mulheres com base em nossa sexualidade e atributos físicos e qualquer argumento ou ironia que utilizemos contra já recebe o brado: falta respeito!

4. Continuam comentando. Elas já deram o veredicto que a discussão é irrelevante, que o texto é besta e que nós não percebemos as obviedades concretas das coisas. Porém, estranhamente, a cada resposta que você dá, elas retornam e fazem questão de continuar a discussão (lógico que a gente tem mais o que fazer e geralmente desiste de ficar respondendo). Tudo pra continuar dizendo coisas do tipo “o mundo é assim, não vai mudar, mulheres precisam mesmo receber rótulos o tempo todo e tá ok discriminá-las porque nós somos bbks e vocês desconsideram a sabedoria de botequim que é riquíssima e silencia as minorias e insistem nessa história de que mulher entende seu corpo e seus anseios e sabem o que é melhor para si mas vejam bem... isso que vocês defendem não é científico!”

Postos os exemplos acima, fica a questão: por que isso acontece? Olha, eu não tenho respostas. Mas desconfio que, ao tratarmos de preconceitos, nós estamos mexendo na identidade dessas pessoas. Numa sociedade castradora, os padrões identitários se formam a partir da discriminação. Porque são justamente eles, os preconceitos, que garantem os privilégios de uns, em detrimento da exclusão de outros tantos. As pessoas não percebem que, ao lutar para manter suas identidades intactas, elas estão colaborando para a manutenção das desigualdades. Não conseguem perceber que, se a base de uma identidade é o preconceito, então essa identidade pode sim ser questionada, já que carrega em si o velho joguinho de reprodução de valores e dominação (Bourdieu manda beijos). Mas é muito mais fácil nos chamar de tapadas do que pensar em mexer nas bases de um sistema de crenças. Ao admitir que nós estamos sim certas em clamar por direitos iguais, essas pessoas estão passando um atestado de que a identidade delas não é soberana. Nem a única possível. Tampouco justa. E é isso, na minha opinião, que as deixa sem chão. 

Finalmente, quando discutimos essa questão da identidade e privilégios, fica muito claro pra mim que essa insistência em acreditar na imutabilidade de padrões culturais revela não apenas o velho e 'bom' backlash, como também um profundo desconhecimento daquilo que se está rejeitando. Refutam nossas idéias pelo simples fato de estarmos questionando toda uma cultura, todo um padrão identitário. E, ao lidarmos com identidade, a reação das pessoas passa a ser de total incredulidade. Porque, como bem coloca a Simone, é muito difícil entender que o "ser" não é tão absoluto como se crê, que mudar é realmente possível: "(...) quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, ele é de fato inferior; mas é sobre o alcance da palavra "ser" que precisamos entender-nos; a má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeleano: "ser" é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve perpertuar-se".