O gay e a piriguete nas novelas da Globo

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Helena sofredora moradora da Zona Sul
Eu é que não vou mentir, curto a novela Avenida Brasil. A Zona Sul do Rio de Janeiro tirou férias do horário nobre, a bola da vez é a Zona Norte. Lá fica o fictício bairro "Divino" que é muito mais interessante. Os personagens da novela refletem a ascensão das classes sociais no Brasil. De forma totalmente realista? Não. Quando eu digo que "reflete", quero dizer que o telespectador começa a querer se sentir representado. Quando o Manoel Carlos colocava uma Helena branca e rica na tela da TV, indiretamente o que se pode compreender é que apenas ricos escrevem a história, o dinheiro é o que torna possível ser agente do seu próprio destino, os pobres seguem conforme a maré, sendo, na maioria das vezes o núcleo engraçado da novela. 

Vilã e mocinha são
pessoas cheias de defeitos
Ainda que Avenida Brasil continue tendo protagonistas ricos, integram o grupo denominado "novo rico", que um dia foi pobre, e agora possui grana e disposição para gastar, mas sem o refinamento típico dos personagens do Manoel Carlos. Os personagens são moradores do Divino, jogadores de futebol, a mocinha é a (rica) empregada doméstica. E num arroubo dramático, a mãe adotiva da personagem principal mora no lixão. E ninguém é perfeito, todos tem pequenos deslizes morais em sua história, incluindo a mocinha sofredora e vingativa. Dentro desse contexto, cada personagem dá um texto, quiçá uma tese. Hoje, entretanto, vou focar em dois personagens que conquistaram o carinho do público. A piriguete Suellen e o gay Roni.


Vejamos o que diz o site da novela sobre Suelen:

"Musa mau-caráter do Divino. Trabalha na loja de Diógenes, mas vive faltando ao serviço para ficar assediando os jogadores de futebol. Maria-chuteira clássica, sua meta é se casar com um craque e se mudar para o exterior. Esconde um passado misterioso."

Se quem deu esse resumo ao site foi o autor, nem ele deve compreender o monstro que criou. Quando digo monstro, não falo de forma pejorativa, me refiro ao tamanho e densidade que a personagem hoje possui. Suelen é demais. Os mais apressados dirão que Suelen é uma mulher sem caráter, que não se dá ao respeito. Pois bem, se você pensa dessa forma, amigo, volte para os anos 50. "Se dê ao respeito" é uma das coisas mais machistas constantemente repetidas nos ouvidos das mulheres, pois significa "comporte-se". Pedir que uma mulher se dê ao respeito é o mesmo que dizer que ela abra mão da sua liberdade sexual, pela qual tantas mulheres lutaram. E Suelen é a liberdade sexual personificada, por isso incomoda. Ela deu pra todo mundo porque, quando e como quis. E também deixou de dar quando não quis. 

Outros ainda chamarão Suellen de interesseira, de mulher que não sabe amar (como a própria atriz Isis Valverde falou para o Faustão no programa do dia 08/07). Mas a Suellen é mais, muito mais do que isso. O "passado misterioso" a que se refere a descrição de Suelen é que ela já foi garota de programa e o seu ex-cafetão é obviamente um explorador, que já chegou a ameaçá-la e a bater nela em alguns episódios. Suelen é interesseira? Sim. Mas o que dizer dos homens que desejam dela apenas o corpo, um momento de diversão, que a objetificam, a usaram, humilharam e até bateram nela? Ninguém está por aí falando mal dos caras com quem ela fez sexo na novela. À piriguete couberam todos os julgamentos morais, por ser mulher, por ser ex-prostituta, por gostar de sexo, por não se envolver e por gostar mais de dinheiro que de homem (e olha que ela gosta muito de homem!). Entre uma cena e outra, ela diz "Já passei por muita coisa dura nessa vida. Mas nunca matei, nunca roubei, nunca fiz mal a ninguém. Só a mim mesma". A conduta sexual da Suelen não é atestado de seu caráter. Suelen é interesseira, mas no quesito dinheiro é sincera. Fala claramente para quem quiser ouvir que está interessada principalmente (e não apenas) no dinheiro. Acho que a cena que melhor mostra as diversas facetas de Suelen e como ela possui valores morais é uma em que ela repreende Lúcio pela forma como trata a mãe. Você pode ver aqui.

Se Suelen é a mulher julgada por todos pela sua conduta sexual, Roni é julgado pela sua orientação sexual. Duas faces do machismo, duas vítimas do mesmo ódio. Roniquito é o filho querido de um pai machão e de uma mãe evangélica. Jogador de futebol, mesmo que esse não seja o grande sonho de sua vida (e sim de seu pai), Roni é craque. E não consegue fechar com um grande time por causa da homofobia. Nossa sociedade machista e homofóbica botou o futebol como o esporte que reflete a virilidade e todo um ideal de masculinidade. Tanto é que ainda tem muita gente por aí que repete igual vitrola quebrada que "mulher não entende de futebol" e nunca ouviu falar de Marta ou de Formiga.

Entendidos os personagens, vamos aos fatos que inspiraram esse texto: Suelen foi presa e seria deportada para a Bolívia, seu país de origem. E Roni quer muito entrar para um grande time de futebol. A mãe, evangélica, convence o filho a pedir Suelen em casamento com a desculpa de que um casamento de fachada irá dissipar os rumores sobre a sua orientação sexual, mas na verdade o que ela realmente quer é "curar" o filho da doença que ela pensa existir. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

No princípio, eu comemorei o casamento de fachada de Suelen e Roni. Pois achei que essa era a forma dos dois de lutar contra a opressão que os acometia. Ele deixou claro que o casamento evitaria a deportação e que seria um relacionamento aberto e portanto ela poderia manter a sua liberdade sexual e ele poderia finalmente ser um jogador de um grande time. Eu imaginava que esse casamento não duraria muito porque é novela e todos os segredos são revelados no final e o segredo dos dois é grande demais para permanecer nas sombras.  Um casamento de fachada vai contra o final feliz que normalmente é adotado pela globo, que quase sempre reafirma que a felicidade só pode vir da família tradicional, do casamento, dos filhos e da monogamia.

Porém, o meu maior temor é outro. A união da piriguete e do gay não é novidade numa novela do João Emanuel Carneiro. Em "a Favorita", Orlandinho casou-se com Maria do Céu. O resultado no passado foi uma ex-piriguete e um ex-gay. O tratamento dispensado aos gays e às piriguetes não é a liberdade de ser, de existir, de agir, de amar quem quiser. Em vez de admirar a beleza do ponto fora da curva, a tendência é a de voltar todo mundo para o seu lugar heteronormativo, machista e castrador. 

Quem dera esses fossem os únicos exemplos de ex-gays em uma novela ou série da Globo. Recentemente também tivemos uma série toda em volta dessa temática: "Macho-man", onde o personagem principal sofre um pequeno acidente e SE TORNA heterossexual (Socorro, gente, não dou conta dessa série...).

Na novela Caras & Bocas, do Walcyr Carrasco, teve o casal queridíssimo do público Cássio e Léa. Um gay jovem e uma mulher mais velha e heterossexual. 

Beijo gay que é bom, cadê? LGBTs* não se relacionam seriamente com ninguém nas tramas da globo. Até existiram alguns exemplos, mas nunca vimos um só beijo. No máximo troca de olhares, insinuações. Ou mesmo amor sem carícias. Tudo fica implícito. Não são a piriguete e o gay que não sabem amar, é a Globo que não sabe diversificar. Mulheres piriguetes em geral acabam por se apaixonar por um homem para se redimir da sua conduta sexual pregressa. E gays em novela são em sua maioria tipos engraçados, pois só assim o homossexual é aceito, fazendo um papel risível, gerando situações cômicas. O drama de ser homossexual é invisibilizado (não vou nem falar de trans e lésbicas, que o buraco é muito mais embaixo e dá todo um outro texto). A Globo, como maior produtora de novelas da TV aberta, não pensa fora da caixa: até bota os holofotes sobre o personagem polêmico, mas tem feito aquilo que toda a bancada evangélica tenta fazer a tanto tempo: calar mulheres, exterminar/curar homossexuais. 

A heteronormatividade da Globo me leva a crer que o futuro de Roni e Suelen está traçado, que haverá um casamento mais padrão do que eles esperam. Só me resta torcer para que minhas suspeitas sejam infundadas, que João Emanuel Carneiro continue demonstrando a sensibilidade com que tratou os dois personagens até aqui, sem fazer de Roni uma piada e nem de Suelen um estereótipo. Esperamos que o autor não faça de "Roni e Suelen" outro "Orlandinho e Maria do Céu" e eles possam ser simplesmente livres. Um gay e uma piriguete até o último episódio dessa novela, que até aqui tem sido tão boa.