O meme do ministro: curtir/compartilhar a birra da exceção

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É de conhecimento geral do país que ocorreu recentemente, no Brasil, o julgamento do escândalo de corrupção conhecido como mensalão. Em um extenso voto que durou uma tarde, o ministro Joaquim Barbosa condenou, só nessa segunda-feira (10 de setembro), nove réus envolvidos no famoso esquema de lavagem de dinheiro que despertou a ira de milhões de brasileiros. A cólera se abateu tão fortemente sobre muitos desses milhões, que acabou fazendo com que a corrupção fosse alçada ao status de problema único que assola a humanidade. A corrupção afetou tanto o sono e o raciocínio dessas pessoas, que até reportagens sem relação com o tema converteram-se em espaço para desabafos. Um canguru morreu na Austrália? Brasileiro é muito corrupto mesmo, cara. Um vândalo pichou o trem numa bucólica cidadezinha do interior dos Alpes Suíços? Brasileiro é isso aí, povo incivilizado, corrupto. A corrupção é o câncer que se alastra pela nação. 

Entretanto, não vou negar que em meio a essa avalanche de indignação, que chega ao ponto de querer silenciar outras lutas, muita coisa interessante aconteceu. Percebi, com alegria, que o ministro Joaquim Barbosa, relator do julgamento, foi alçado à categoria de herói pela população brasileira. Ele, que rejeitou o título dizendo-se “apenas um barnabé”, passou a ser visto como modelo de cidadão incorruptível e justo. Vários memes circularam pelas redes, celebrando a vida do nosso ministro e sua atitude enérgica para com os criminosos. A punição exemplar, calcada na Constituição, daria ao ministro credibilidade suficiente até para se candidatar a presidente do Brasil. Pelo menos, foi isso que senti ao presenciar a frequência com que tais memes apareciam em nossos feeds de notícias.

Eu confesso ter ficado feliz com a reação das pessoas à ação do ministro. Entretanto, escrevo-lhes essas mal-traçadas de hoje para deixar registrado um fato que me chamou bastante a atenção. Creio que aí entra em cena a galera insone e com raciocínio afetado a que me refiro no início do texto. Dentre tantos memes comemorativos, circula alguns nada a ver BEM nada a ver mesmo que dizem algo como: “Esse negro não precisou de cotas para entrar no STF”. Vi várias variantes do meme com o mesmo conteúdo. 



Parece que o fato do ministro Barbosa ter brilhado no processo que culminou com a justa condenação dos envolvidos agiu no sentido de alavancar o sentimento de arrebate experienciado pela galera contrária às cotas. Muitxs negrxs publicaram, orgulhosxs, tal meme em seus murais e afins. Acredito que a identificação com o ministro, que teve um longo caminho de luta e superação individual para chegar onde está, forneceu esteio necessário para a viralização de tais memes. 


Em uma estrutura mais superficial, eu vejo esse compartilhamento coletivo como uma insistência em celebrar as exceções, que são raríssimas no Brasil, mas que funcionam como um inebriante exemplo de uma ufania conhecida como meritocracia. A cada foto que eu via, ficava a sensação de que a mensagem era uma só: tá vendo como não precisamos de cotas? Negros são capazes de subir na vida sozinhos!

Um parêntese: eu não deixo de me entristecer e me sentir impotente ao perceber o alto índice de pessoas negras compartilhando essas coisas. Isso prova, a meu ver, que a colonização mental “work” muito bem, pra usar o termo do racista Monteiro Lobato, tamanha é a sua sutileza em incorporar até aquelas pessoas que deviam opor-se fortemente ao sistema, dado o caráter excludente do mesmo.

Agora, em uma análise mais profunda, percebemos o grau de incoerência desse segmento da população brasileira: ficou a impressão de estarem celebrando algo que o ministro não é. Ou seja, ele não é contra as cotas. Tanto que seu voto foi a favor das mesmas. Vejam bem. O ministro é um privilegiado. Dizem que ele já foi faxineiro e tem uma história de esforço e superação pessoal linda pra contar. Isso faz dele uma exceção. Uma exceção que pode, e deve, ser celebrada.

Entretanto, as pessoas insistem em incorrer num erro primário, pra dizer o mínimo. Ao celebrar a exceção, também dão a entender que todo um sistema deve ser feito de...exceções. Assim, é natural, normal e até desejável que a sociedade seja composta por uma maioria que mal consegue pagar o aluguel e uma minoria que, com muita garra, determinação e leitura do Segredo, consegue chegar ao topo. E se alguém questionar tudo isso, a resposta é imediata: quem mexeu no meu queijo?

Eu confesso que fico passada quando me vejo diante desse tipo de raciocínio. Ainda bem que existem muitxs negrxs que, assim como o ministro Joaquim Barbosa, não compram essa idéia de que as exceções seriam suficientes para justificar a situação de pobreza e falta de dignidade em que a grande maioria se encontra, hoje, no Brasil. O fato de o ministro Joaquim ter alcançado o topo é ótimo? Sim. Porém, seguimos sendo uma das nações mais desiguais do mundo. É por isso que eu gostaria de finalizar com as palavras do Sakamoto, que ao meu ver resumem perfeitamente o que ocorre no Brasil desde sempre. Lembram do meu parêntese sobre a colonização mental? Pois é.  

“Parte dos trabalhadores que adentraram a linha do consumo adota com facilidade o discurso conservador. Conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm, o que é justo e compreensível. Mas isso tem consequências. Em pesquisas de opinião sobre políticas de habitação, por exemplo, quem tem pouco abraça por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes especuladores urbanos e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de “mão-beijada” por parte do Estado. Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.

E que dignidade não é algo que tem que ser conquistado a duras penas através do esforço individual, mas faz parte do pacote de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais que você deveria ter acesso simplesmente por ter nascido. Ignoram porque aprenderam que as coisas são assim.”