O moralismo da frase "se não quer engravidar, não transe"

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Texto de Thaís Campolina e Flávia Simas.
"Se não quer engravidar, não transe" é uma frase que sempre aparece nas discussões sobre a legalização do aborto e ela é sintomática sobre como o exercício da sexualidade feminina ainda hoje é julgado negativamente e sofre tentativas de controle e condenação.
Indiretas Feministas
Sob o prisma das relações entre casais cis e héteros, a culpa da gravidez indesejada sempre recai sobre a mulher, principalmente por causa do moralismo que ainda permeia a sociedade quando falamos sobre a sexualidade feminina. Numa sociedade com um machismo vigente, a sexualidade feminina só é vista como existente se acessória da masculina, sendo o desejo sexual feminino considerado inexistente, coloca-se como dever da mulher "se preservar". Essa lógica machista e slutshammer reflete também na ilógica responsabilização apenas da mulher quando se fala em gravidez indesejada.
Dentro desse contexto, responsabiliza-se apenas a mulher porque não se espera que ela não deseje ter filhos e que a sexualidade dela exista sem ser no âmbito familiar. E essas mulheres que não são vistas como castas, conforme a lógica machista, merecem a gravidez indesejada e, para alguns mais sádicos, até a morte decorrente do aborto clandestino como uma punição. Em uma cultura falocêntrica em que o prazer da mulher é visto como algo secundário, punir a mulher com uma gravidez indesejada faz parte de uma estratégia de manutenção do patriarcado. Obrigar a mulher a levar uma gravidez indesejada adiante é um ato de tortura, é querer justificar um erro com outro (dizem que toda mulher sabe se proteger, e a que não se protege é vista como alguém que precisa ser punida por isso, e a gravidez é vista, justamente, como um punição).
O processo de culpabilização ignora que todos os métodos contraceptivos têm margem de falha e que a mulher não é a única responsável pela gravidez e nem pelo possível fruto dela. Ainda hoje homens não participam dos cuidados da casa e nem do cuidado de seus filhos, sendo assim, a mulher, caso tenha o filho, comumente é a pessoa que se responsabilizará por ele e muitas vezes sozinha. Como a responsabilidade da gravidez indesejada é colocada nos ombros apenas da mulher grávida, percebe-se que a intenção é punir a sexualidade dela e colocá-la para servir de exemplo para outras mulheres. Para deixar ainda mais clara a intenção moralista dessa responsabilização única da mulher é só pensar em como a mãe solteira sofre um estigma fortíssimo de vadia. O patriarcado pune tanto a mulher que decide prosseguir com a gravidez, quanto a mulher que decide interrompê-la.
A favor da despenalização do aborto
É importante destacar que essa culpabilização ignora diversas nuances que merecem ser expostas e questionadas, entre elas destaca-se o fato de que mesmo pessoas de classe média que na teoria tem todo acesso do mundo à informação raramente sabem que algumas interações medicamentosas podem diminuir a eficácia da pílula anticoncepcional, por exemplo. Imagine então como o acesso à informação, ao atendimento médico para que haja um planejamento familiar, aos contraceptivos e à educação sexual como um todo é ainda mais restrito para pessoas em situação de vulnerabilidade social. E num país como o Brasil, que tem uma desigualdade social gritante, ignorar essa realidade é ser negligente e elitista. Nesse ponto, um lembrete, há uma feminização da pobreza e numa sociedade racista, a questão de classe é permeada pela questão étnica e também de gênero. Sendo assim, as maiores vítimas que a criminalização do aborto e a ausência de políticas públicas de educação sexual eficazes traz são as mulheres negras e pobres.
A luta pela legalização do aborto vai além da legalização em si, educação sexual para todos e acesso a contraceptivos e atendimento médico ginecologista é também parte da bandeira. Muitas das pessoas que são contra a legalização do aborto e dizem que hoje em dia só fica grávida quem quer, e que por isso a pessoa deve arcar com as consequências, ignoram que o fundamentalismo religioso e sua influência no nosso Estado que na teoria é laico influencia negativamente na eficácia da educação sexual que temos, logo na prevenção. Afinal, eles militam contra o uso da camisinha e métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional e sua distribuição gratuita e pressionam para que a educação sexual oferecida seja falha e se baseie em pregar a abstinência.
Outro ponto que ainda hoje é muito comum dentro de relações cisheteronormativas é a pressão exercida por homens para que as mulheres não usem camisinha, que é um método que além de contraceptivo, é também uma forma de se proteger de doenças sexualmente transmissíveis. As vítimas de violência doméstica compõem um grupo de risco também quanto às gravidezes indesejadas e abortos clandestinos, devido sua situação de vulnerabilidade, viver em constante ameaça e ter seus direitos básicos e autonomia restringidos pela violência. E quem diz "só engravida quem quer" as negligencia numa crueldade gritante, visto que a violência sexual é um componente de relações abusivas e elas são mulheres que não tem acesso aos direitos sexuais e reprodutivos.
O fato de que "alguma mulher poderá se aproveitar do sistema" é outro forte argumento dos chamados
Fotocampanha promovida pela Marcha Mundial das Mulheres.
"pró-vida" que não encontra respaldo na realidade. Pois toda lei é passível de ser burlada, e todas as pessoas podem se aproveitar de uma lei para agir de má-fé, isso é da natureza humana. Entretanto, isso não permite que as liberdades individuais simplesmente deixam de existir. No caso da mulher, essa liberdade é tirada dela, sob a desculpa de que algumas irão se aproveitar de tal liberdade para fazer uso indiscriminado dela - e isso revela uma infantilização da mulher, isso é a sociedade falando para a mulher que ela NÃO é capaz de agir com maturidade, e isso é inadmissível.
"Se não quer engravidar, não transe" é uma frase que atenta contra os direitos reprodutivos e sexuais e a autonomia da mulher e ignora diversos aspectos sociais e de saúde pública que permeiam a ideia da legalização do aborto. O moralismo, junto com a negligência racista e elitista que permeia nossa sociedade dificulta o acesso das mulheres aos métodos contraceptivos, à educação sexual eficaz e de qualidade e ao planejamento familiar. Enquanto isso, mulheres pobres, principalmente negras, são condenadas à morte ou ao escárnio por serem mães solteiras e a ver o ciclo da pobreza se repetir. Obs: Não só mulheres podem engravidar, homens trans e pessoas não binárias que tem útero também podem. Logo, todos os direitos defendidos pelo texto, como o aborto seguro e educação sexual, se estendem a essas pessoas.  Pra quem não viu, sugerimos fortemente este vídeo aqui. E é sempre bom recordarmos os textos que já foram postados a respeito neste blog, como o texto da Thaís e o guestpost  escrito pelo Henrique Marques-Samyn.  Lei é eficaz para matar mulheres, diz especialista.