Os estupros da Bolívia: cultura do estupro, perdão forçado.

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*Trigger Warning* :  este texto expõe um cenário de extrema violência contra a mulher.

Saiu no feministe e, como o artigo era imenso, eu fui adiando a leitura. Até que sábado eu resolvi fazê-la. Confesso que o mal-estar foi tanto que a primeira coisa que pensei em fazer foi traduzir o texto. Diante da impossibilidade de traduzir um texto tão imenso (sério, acho que eu ia levar dias pra conseguir fazer algo decente), resolvi então escrever a respeito. Traçando um paralelo com um assunto que vem sendo bastante discutido entre as feministas brasileiras: o perdão. 

Não pretendo aqui entrar no mérito da religiosidade ou não do perdão. Se tal atitude é um valor humano universal, ou se ela é meramente um artefato das religiões para trazer alguma paz ao coração de quem sofreu algum mal, não importa. O que eu quero dizer aqui é que, independentemente da raiz do perdão, o apelo a ele é muito forte e nós, feministas, precisamos discutir e problematizar o assunto de forma mais profunda. 



Voltando ao artigo. Pelo título, "Estupros-fantasma da Bolívia", já podemos imaginar o que vem pela frente. Um denso relato de estupros em uma comunidade religiosa da Bolívia. Um relato que não deixa dúvidas quanto à capacidade humana de cometer atrocidades. Por anos a fio, mulheres da comunidade acordavam ensanguentadas, com as roupas rasgadas e as camas sujas de terra e de sêmem. Elas não conseguiam se lembrar de praticamente nada e, quando muito, lembravam-se que estavam sendo atacadas, mas não tinham forças para lutar contra o estuprador. 

A comunidade, de religiosos menonitas (algo parecido com os Amish dos Estados Unidos), inicialmente não acreditara nos relatos da primeira mulher que resolveu abrir a boca a respeito. Como acontece com praticamente toda mulher que é estuprada nesse mundo, duvidaram da legitimidade de tais estupros. Chegaram a cogitar que ela estava era de "namorico" pela cidade. Os ataques, porém, não só não cessaram, como se tornaram cada vez mais violentos. Crianças e mulheres de todas as idades eram brutalmente violentadas, sempre à noite, sempre dormindo. 

As mulheres da cidade estavam vivendo uma situação absolutamente nefasta de terror, e alguma explicação precisava ser dada a respeito. Obviamente que, por se tratar de uma comunidade religiosa (cristãos protestantes de origem alemã - inclusive utilizam o baixo-alemão para se comunicarem por lá), a explicação viria carregada de misticismo: o demônio estaria estuprando essas mulheres. E tudo estaria sendo feito por vontade de Deus. Ou seja, se o todo-poderoso estava enviando a provação, era porque elas deveriam aguentar firmes. 

Só se sabe que a situação estava tão absurda que o bispo local resolveu então pedir ajuda às autoridades bolivianas (que geralmente não se metem nas questões internas da comunidade, nem mesmo em casos de crimes, salvo assassinatos, pelo que entendi). Descobriu-se que um grupo de homens pertencentes à comunidade estavam por trás dos estupros. Usando um spray. Agora vou traduzir um parágrafo do texto para que vocês tenham noção dos requintes de crueldade: 

"Então, numa noite de junho de 2009, dois homens foram pegos tentando entrar em uma casa da vizinhança. Os dois delataram alguns amigos e, como um dominó que cai, um grupo de nove homens de Manitoba, de idade entre 19 e 43, acabaram confessando que eles vinham estuprando famílias da colônia desde 2005. Para incapacitar as vítimas e suas possíveis testemunhas, os homens usaram um spray criado por um veterinário de uma comunidade Menonita vizinha, que ele adaptara de um produto químico utilizado para anestesiar vacas. De acordo com as confissões iniciais (que foram negadas posteriormente), os estupradores admitiram que - às vezes em grupos, às vezes sozinhos - eles se escondiam do lado de fora das janelas dos quartos à noite, jogando o spray com a substância pelas janelas para drogar famílias inteiras, e depois entravam nas casas."

Acho que esse relato já seria assombroso se parasse por aí. Mas ele continua. E piora de um jeito que não tem como não pensar em um roteiro de filme de terror. Vou resumir: o governo da Bolívia ofereceu ajuda psicológica às vítimas. O bispo negou a ajuda. Só que ele não só não deixou que elas buscassem auxílio, como obrigou-as a PERDOAR os estupradores. Porque, segundo ele, se elas não perdoassem os estupradores, deus não as perdoaria. Acontece que não é "só" isso. A jornalista que fez a reportagem também fala em incesto. 

Para piorar a vida dessas mulheres, elas TAMBÉM são estupradas dentro de casa. Por irmãos. Pais. Parentes. Gente em quem elas deveriam confiar, sabe? E os relatos dizem que é "normal" serem molestadas, e quando elas levam isso às autoridades (ou seja, bispos e pastores), eles investigam, confrontam o estuprador, que se diz arrependido e voilá! Se ele se arrependeu, minha filha, sua obrigação como cristã é PERDOAR. E elas perdoam. E voltam para casa com seus algozes que agora tomarão cuidado redobrado para não serem pegos novamente. A união e estrutura familiar permanecem intactas. E os crimes continuam acontecendo. Pelo jeito, até hoje. 

Não tem como ler um texto desses e não se sentir impotente. Não tem como não emputecer. A questão maior que eu queria colocar aqui e não sei se vou dar conta é: até que ponto esse microcosmo não está aí nos ensinando o que acontece, sem tirar nem por, na nossa sociedade "aberta"? Até que ponto o perdão é realmente algo que deveríamos almejar? 

Porque sabe, a cultura do estupro já perdoa os estupradores, de antemão. Ao afirmar que a culpa é da vítima. Ao colocar mulheres não como seres humanos, mas como criaturas ardilosas, naturalmente programadas para representar uma tentação na vida dos homens. Não obstante, mulheres de todos os tipos, das consideradas "putas" às "santas", são violentadas. A situação de violência contra a mulher é epidêmica e a cultura do estupro permanece intacta. Bem como a cultura do perdão. 

A dinâmica é bem simples, e bem danosa também. Somos criadas, desde muito cedo, a almejar sentimentos nobres. Nenhum problema aí. Acredito sim que sentimentos nobres precisam guiar as vidas das pessoas. Entretanto, uma análise da forma como tais sentimentos são encorajados leva a crer que estamos falhando miseravelmente no quesito justiça. Porque sempre, repito, SEMPRE, o sentimento de culpa é inculcado na vítima, e não no agressor. Porque quem não perdoa é vista como uma pessoa má pela sociedade. 

Somos criadas em uma cultura que diz que é possível transformar sapo em príncipe. Somos levadas a crer que o amor é a solução para tudo, inclusive para relações violentas. Portanto, em um contexto desses, eu acho complicado falar em vitimização do opressor. Entendo que a humanidade é vítima de todo um sistema criado para aparentemente proteger mulheres e crianças (afinal, é essa a desculpa que ouço desde que me entendo por gente para justificar a opressão desses dois grupos). Entretanto, é inegável que o ônus maior desse sistema (que não funciona) recai sobre as mulheres.

Portanto, diante do exposto acima, fica as perguntas: faz algum sentido dar voz e vez ao discurso do perdão em espaços feministas? Será que um foco maior na busca por justiça, deixando de lado o perdão, que silencia a vítima e não resolve o problema, não seria a melhor saída? Que tipo de sociedade queremos construir (para nós e para as gerações vindouras): uma que efetivamente busca a justiça, ou essa em que o discurso pretensamente suave do perdão continua a manter tantas vítimas em silêncio?

A mulher estuprada já carrega uma carga pesadíssima de culpa, na nossa sociedade. Enfatizar o discurso do perdão é fazê-la carregar a culpa de não conseguir perdoar, de querer se vingar, de odiar, juntamente com toda a culpa que a sociedade já deposita nela. Lutar pelas mulheres significa entender muitas coisas que se passam com elas. O ódio, inclusive.

Para quem se interessou pelo caso, o artigo está bem mais completo e pode ser lido em inglês, aqui.

Por Flávia Simas com colaboração de Thaís Campolina.