Pais nunca erram?

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Por Flávia Simas macaco2

Quando fazemos parte de alguma minoria, conviver com microagressões é praxe. A questão é que muitos ou não enxergam as microagressões que lhes são dirigidas, ou então simplesmente não as consideram válidas. Esses últimos geralmente se acomodam, confortavelmente, na categoria de microagressores. Um exemplo mais recente de uns e outros pode ser encontrado no bafafá envolvendo um casal que fantasiou o filho negro de macaco, em Belo Horizonte, durante o carnaval de 2016.

 O ocorrido deu vazão aos mais variados tipos de comentários na internet. Quando vários internautas chamaram atenção ao fato de que não é legal vestir um menino negro de macaco e reforçar portanto um estereótipo que tem raízes profundíssimas no imaginário popular globalizado, não demorou muito para que as pessoas que não enxergaram o problema se manifestassem.

Daí eu tive que assistir, incrédula, a um festival de comentários do tipo: "cambada de vitimistas, vêem racismo em tudo!", "o racismo está nos olhos de quem vê!" e o fatídico "coitados dos pais dessa criança, eles que cuidam, dão amor e carinho e vocês fazem isso".

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Eu queria primeiramente deixar claro que não concordo com ataques e ofensas pessoais ao casal (inclusive, pelamor né, essa história de tirar a guarda da criança é absurda, bem como mostrar o rosto da criança). Entretanto, me ficou martelando na cabeça a noção de que pais não erram. Volta e meia eu me deparava com algo parecido com o último comentário que citei acima, e o teor do mesmo me assusta. Porque ele revela não apenas uma acriticidade crônica, como também uma noção que está muito entranhada na cabeça das pessoas: a de que pais amam, e onde há amor não pode haver racismo. Toda vez que eu leio algo do tipo, me vem a certeza que ainda precisamos discutir muito sobre racismo: o que ele é, e quais as implicações nas vidas de quem o sofre diariamente.

 Primeiramente, está faltando um entendimento geral acerca do fato de que nós vivemos em um mundo em que a ordem naturalizada das coisas é hierarquizar seres humanos. Existem várias formas de se fazer isso. A mais eficaz ao longo dos séculos tem sido a hierarquização com base no gênero e na raça. Preciso fazer um parêntese rápido aqui para explicar que não estou falando de biologia. Sabemos que biologicamente o conceito de raças não existe. Entretanto, o conceito social de raça está mais do que arraigado no sistema, e isso é feito através de toda uma estrutura que paulatinamente relega a pessoa negra a posições inferiorizadas e de menos respeito na sociedade. Daí que ao tentarmos chamar atenção e conscientizar a respeito do sutil e velado racismo que é sim prejudicial em muitos níveis (desumaniza o negro e divide as pessoas, por exemplo), somos taxadas de vitimistas ou feministas histéricas. Isso é típico de quem só consegue ver o racismo em seu aspecto mais brutal, ou seja, quando envolve ataques físicos e mortes (e olhe lá). Sempre relativizam, e no caso dos pais que vestiram o filho de macaco, a relativização se torna ainda mais estridente, a reação é mais voraz. Tudo em nome de uma suposta perfeição dos pais. macaco6

E daí eu pergunto: se vivemos imersos em uma cultura que é em si racista e excludente, o que nos faz pensar que o amor é a prova cabal de que não se é racista? Não seria mais honesto simplesmente admitir que o racismo está tão entranhado nas nossas veias que precisamos sim chamar atenção aos pormenores que mantém a estrutura de exclusão intacta? Eu sei que o trabalho de desconstrução dói. São as diversas camadas de paradigmas sendo retiradas, e às vezes elas estão tão acopladas em nós que retirá-las machuca. Mas, se desejamos caminhar rumo à uma sociedade mais justa e igualitária, não há outro caminho.

 Vejam bem. A atitude de vestir o menininho de macaco não faz do pai dele um racista. Assim como a atitude de milhares de mães em levar suas filhas para alisar o cabelo com cinco anos de idade - isso inclui a minha - não as faz necessariamente racistas. Mas precisamos sim tentar entender de onde vem essas ações, e tentar combatê-las é necessário se prezamos pelo bem estar das gerações vindouras. De nada adianta falar que o pai daquele menininho não pode ser racista porque senão ele não o teria adotado em primeiro lugar. Porque nós sabemos que é óbvio que ele quer o melhor para o seu filho. E eu acredito realmente que ele não pensou na repercussão que tal fantasia teria. Assim como as milhares de mães que começaram a alisar os cabelos 'ruins' das suas filhas - repito, a minha inclusa - não pensaram que isso poderia jamais contribuir para a manutenção da idéia racista de que o cabelo da mulher negra é de inferior qualidade. Caso elas tivessem pensado que isso apenas contribuiria para que as coisas não mudassem, eu tenho certeza que teriam agido diferente. E o mesmo se dá com o pai do menininho vestido de macaco. macaco7

Outro detalhe que merece a menção é o fato de que muitos dos que reagiram ao puxão de orelha coletivo que foi dado no pai do menino acabaram fazendo comparações que se utilizam de falsa simetria. Em outras palavras, postaram fotos de menininhos brancos e asiáticos vestidos de macaquinho do Aladdin, bradando em alto e bom tom que o politicamente correto foi longe demais, ou virou 'doença'.  E seguem achando que tá tranquilo, que tá de boa achar que um menino de qualquer outra etnia vestido de macaco tem a mesma carga semântica que um menininho negro vestido do mesmo bichinho.

 Crianças não-negras não carregam em si o estigma da comparação com um estágio inferior da evolução humana. Não se jogam bananas em jogadores de futebol brancos. Não atacam páginas de atrizes brancas famosas como a Thaís Araújo e a Sheron Menezes, chamando as mesmas de macacas. A globeleza de pele mais clara é mais 'palatável' para o brasileiro médio. A globeleza negra de pele escura é chamada de macaca. Enfim, o estigma é mais real e palpável do que as pessoas querem acreditar. Os exemplos acima me vieram à cabeça sem que eu fizesse muito esforço. Tenho certeza que pessoas que não se encontram em órbita podem me fornecer outros exemplos que também surgem naturalmente. Ao que eu pergunto: se todo mundo sabe de algum evento em que alguma pessoa negra já foi constrangida com piadinhas de 'macaco', então por que será que é tão difícil assim reconhecer que fantasiar uma criança negra de macaca é problemático? Seria medo de tirar a santidade dos pais? Pode criticar, gente. O mundo só melhora porque o despertar de consciência existe. É possível amar e carregar racismo internalizado sim. Porque num sistema como o nosso, todo mundo carrega um pouco do ranço escravagista. E é nisso que a microagressão involuntária (vestir o filho negro de macaquinho) ocorre. E se reforça nos aplausos  seguidos da frase de efeito desabonadora: "o racismo está nos olhos de quem vê". Mas, nós estamos aqui para desconstruir isso. Sempre. menino-macaco