Relações tradicionais e a infidelidade feminina

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Apesar das múltiplas formas de relações que conhecemos hoje – principalmente quando começamos a nos envolver em meios de luta feminista, LGBT* e questionar determinadas normatividades vigentes – em geral bem sabemos que a estrutura social e a força política está concentrada em torno de apenas um modelo familiar: Heterossexual e monogâmico.
Ninguém está aqui para negar que possam existir relações heterossexuais e monogâmicas muito bem sucedidas. Com igualdade, liberdade e escolha dos envolvidos. Porém não podemos desconsiderar que esses dois pontos são compulsórios, ou seja, nos são ensinados desde muito cedo como as únicas formas possíveis de amor. E quando digo muito cedo, digo muito cedo mesmo, palavra de uma mãe que desde que teve a filha no útero ouviu coisas como “é uma menina? Fulana está grávida de um menino, olha só, podem ser namoradinhos rs”.
Esse modelo familiar tradicional é estruturalmente patriarcal e, consequentemente, machista. E aí entramos no verdadeiro assunto desse texto: A infidelidade. Mesmo nos meios feministas é possível notar uma certa resistência a visualizar a dita “traição” e compreende-la, admitir que ela pode não ser algo tão errado assim. Isso acontece porque partimos de um princípio de isonomia que na prática da maior parte das relações é inexistente.
Em uma relação monogâmica e heteronormativa a figura feminina está invisivelmente sendo oprimida. A família do comercial de margarina é, na realidade, uma estrutura que sujeita a mulher a uma série de agressões físicas, sexuais e psicológicas que agem no sentido de manter o status quo familiar. Um dos exemplos mais importantes é a questão da autoestima feminina que é minada socialmente. É consenso desde as igrejas às revistas femininas que  ela deve ser a base do lar, cabe sempre a ela a manutenção do casamento e a função de agradar o homem.
Diante de uma relação permeada por essa violência, como podemos equiparar a infidelidade masculina da feminina? Quantas vezes já ouvimos falar do homem que “trai” por que a mulher não cumpre sua “função” como esposa? Iludido por essa lógica patriarcal o homem espera encontrar dentro de casa não uma companheira, mas uma mulher que esteja sempre sujeita as suas vontades.
A mulher, ao se ver dentro de uma relação que desconsidera suas vontades, oprime sua liberdade de ser e mina sua autoestima, passa a viver um mundo que não é o dela, mas sim o do marido e da estrutura familiar tradicional.
Nesse sentido, a infidelidade feminina não é apenas uma forma de alcançar prazer, de viver um caso de amor (embora possa sim ser também), mas sim de se desvincular dessa vida de opressão que foi imposta a ela, desse lugar comum que a violenta diariamente. A “traição” funciona como uma fuga, a busca de encontrar um ambiente no qual tenha sua autoestima elevada, no qual seja compreendida, acalentada e possa realizar suas próprias vontades.
Mesmo quando a pessoa com quem a mulher se envolve não seja um exemplo a ser seguido (é possível, inclusive, que seja tão opressora quanto o homem que se encontra dentro de sua casa), não aja de maneira a colaborar para a visibilidade dos desejos da mulher. Mas para quem está sujeita a viver buscando realizar exclusivamente a vontade alheia (do chefe no trabalho, do homem no casamento, dos filhos dentro de casa), a infidelidade em si age como um processo libertador, afinal, é uma decisão dela, uma ação que ela escolheu fazer por si própria.
A mulher que “trai” encontra nessa “traição” uma forma simbólica de realização pessoal, de autonomia, coisas que não são permitidas a ela na vida tradicional em que se encontra. Mais do que isso, está fugindo das agressões, do aprisionamento, do cerceamento que é feito sobre ela pela família patriarcal. A atração que leva a infidelidade feminina não é apenas pelo outro, mas sim por si mesma, pelo resgate de si, pela vivência de relacionamento visceral, fora das aparências que exigem dela uma anulação diária.
E a premissa de simplesmente “abrir o relacionamento” aqui não é válida. Pelo simples motivo de que as relações não-monogâmicas ainda vivem no campo da marginalidade, do desconhecido. Quantas pessoas você conhece que admitem a possibilidade de viver uma relação aberta? Ou sequer sabem que existe essa possibilidade? Eu mesma não sabia até os meus 17 anos, quando um livro sobre o assunto pulou nas minhas mãos. Essa alternativa ainda não é palpável para a maioria das pessoas.
Sendo assim, ao falar de infidelidade não podemos apenas partir do pressuposto da palavra, do acordo de monogamia pré-estabelecido, acreditando que toda quebra de acordo é um erro e fim. O contexto deve ser levado em conta e enquanto não houver igualdade de gênero, as relações não seguirão de forma horizontal, portanto, olhando criticamente as atitudes não podem ser consideradas iguais.
Vou terminar esse texto reiterando o óbvio: Não estamos falando de todas as relações, todos os homens, todas as mulheres, todas as monogamias. Mas como já falamos aqui no blog, generalizamos porque não queremos tratar das exceções, queremos problematizar a ordem dominante.