Roupas não previnem estupros. Em lugar nenhum do mundo.

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Todxs sabemos que existe uma tendência geral a jogar a culpa de um estupro na vítima. Casos recentes, como a reação de parte da população ao estupro das meninas do New Hit, nos dão a medida do quão alarmante é a situação. Porque sabemos que culpabilizar as vítimas só faz piorar o problema. Porque sabemos que não há relação nenhuma entre as vestimentas da vitima e o seu estupro. Sabemos disso, mas infelizmente há uma galera que insiste em levantar a voz, real ou virtualmente, para corroborar o mito de que quem se veste “decentemente” estaria imune aos ataques.  

Semana passada eu acabei botando os olhos no texto que vos apresento abaixo, e resolvi  traduzi-lo. Muitas vezes é preciso olhar para fora de nós mesmxs, para outras culturas, para realidades totalmente alheias à nossa, para que possamos entender a dimensão de um problema. Ao ler o texto você pode até pensar “ahhhh, mas isso é uma realidade muito diferente da brasileira”. Não é. O que o autor relata é realmente um absurdo. Um absurdo que tem lugar até no ocidente. Até no Brasil. E precisamos mudar isso.

O mito de como o hijab protege mulheres contra abuso sexual
Por Josh Shahryar
       
Eu tinha apenas 6 anos de idade quando minha família foi forçada a fugir da guerra civil do Afeganistão no final dos anos oitenta. Minha irmã, Neelo, que é cinco anos mais velha que eu, foi matriculada em uma escola saudita de inspiração fraterno-muçulmana para refugiados afegãos. Ela, assim como muitas mulheres muçulmanas, usava um simples lenço na cabeça. 
       
Eu me lembro da Neelo pegando a bolsinha dela, enrolando o lenço ao redor dos cabelos e indo para o seu primeiro dia de aula. Eu também me recordo, com tristeza, que ela voltou da escola naquele dia e disse aos nossos pais: “Os guardas me disseram, ‘ou você usa o hijab completo ou então um chador [a burqa afegã], ou então não entra na escola.’” O seu lencinho para a cabeça não era mais suficiente.

A escola que ela estava era dirigida por ultra-conservadores.

A Neelo foi forçada a usar o tipo mais restritivo de hijab - quase igual ao da mulher nesta imagem. As coisas correram bem, até o ano seguinte, quando eu comecei na escola. Minha mãe sentou-se comigo e me disse que a partir daquele dia eu teria que levar a minha irmã à escola todos os dias.

Eu acabei odiando a experiência. Todo dia escolar, por anos, quando nós andávamos até a escola da Neelo, os homens a encaravam, avaliando seu corpo por detrás das vestes escuras, cochichando entre si, fazendo sinais com as mãos, assobiando, insultando-na, e dizendo coisas como quão bonita ela era - à revelia do fato de que a única coisa visível em seu corpo eram os olhos.

Os homens que passavam por nós pela calçada diziam coisas humilhantes - coisas de natureza sexual que eu era muito novo para entender. Minha mãe e meu pai queriam que eu a levasse para a escola porque, se eu não estivesse com ela, o que esses homens seriam capazes de fazer? Eu cresci ouvindo histórias de mulheres que foram apalpadas, esmurradas, raptadas até - tudo isso enquanto usavam hijabs. Os perpretadores vinham de todos os grupos étnicos e eram tanto paquistaneses como, assim como nós, refugiados.

A experiência me deixou furioso, impotente, e traumatizado. Nós nunca conversávamos a respeito. O que ela não sabia é que eu sabia que ela se encontrava machucada, emocionalmente e psicologicamente. Ela não precisaria me dizer que não se sentia protegida sob o hijab. As lágrimas por detrás de seu véu eram-me suficientes.

Essas memórias vieram à tona para me assombrar na terça-feira última, Dia Mundial do Hijab (4 de setembro de 2012). O dia celebra o direito da mulher muçulmana escolher o que deseja usar. O lenço e outras formas mais restritivas de cobertura da face e do corpo são amplamente conhecidos como o hijab; ao longo dos séculos, ele se transformou num símbolo do Islã conservador e, para alguns, uma característica das devotas e modestas muçulmanas. A prática não é algo uniforme em todos os países, usar o hijab “conservador” significa cobrir completamente os cabelos de uma mulher e, em muitos lugares, até o seu rosto, com um véu, ou pardah (um longo e fino xale que cobre a cabeça e o tronco, usado principalmente no sul da Ásia), uma burca (um tipo de xale, com capuz e véu embutidos, usado no Afeganistão, Paquistão e Índia), ou diversas outras variantes. Não é permitido, nas interrpetações mais conservadoras, mostrar nenhuma parte do corpo de uma mulher, exceto seu rosto, mãos, pés abaixo dos tornozelos e, às vezes, o pescoço.

Os avanços nos direitos das mulheres ao longo dos dois últimos séculos permitiram que as mulheres religiosas tomassem algumas liberdades no tocante à escolha de suas vestimentas. Ainda assim a resposta dominante por parte desse movimento de uma corrente principal conservadora tem sido separar a prática de sua natureza religiosa e encontrar razões para justificar não apenas a observância à prática de fé, mas também por benefícios supostamente práticos.

Eu vou deixar um excerto de um artigo de uma escritora chamada Sehmina Jaffer Chopra para o site de questões islâmicas Islam101.com explicar o que vem ocorrendo:

Outro benefício de adornar um véu é que o mesmo trata-se de uma proteção às mulheres. Os muçulmanos acreditam que, quando as mulheres mostram sua beleza a todos, elas entram em estado de degradação, tornando-se objetos de desejo sexual e acabam ficando vulneráveis aos homens, que olham para elas como uma “gratificação ao desejo sexual” (Nadvi, 8).O Hijab sinaliza que tais mulheres pertencem à classe das mulheres modestas e castas, de forma que os transgressores e homens sensuais possam reconhecê-las como tais e assim, não as importunem com suas travessuras (Nadvi, 20)O Hijab resolve o problema de assédio sexual e avanços sexuais não-desejados, o que é tão humilhante para as mulheres, quando os homens recebem sinais mistos e acreditam que elas querem seus avanços baseados na forma como elas revelam seus corpos. [grifo meu.]

A idéia de que o hijab de alguma forma protege as mulheres contra assédio sexual e/ou violência, não se trata, de jeito nenhum, de uma visão minoritária. Clérigos célebres, como o egípcio Sheikh Yusuf al-Qaradawi - considerado amplamente como um líder da fraternidade islâmica e boa parte do pensamento islâmico sunita - e o Ayatollah Sayyed Ali Khamenei - a suprema autoridade religiosa e política e uma das fontes principais  de jurisprudência xiita islâmica - endossam essa visão. 

Esta não se trata apenas de uma afirmação que não tem base de fato; ela é, também, perigosa. Eu sei disso porque eu presenciei o hijab da Neelo falhando em protegê-la por anos a fio.

Eu sei disso porque eu vi, ouvi, ou li múltiplos relatos em primeira pessoa de vítimas de assédio e violência sexual que estavam usando o hijab no momento em que foram atacadas. O hijab não pode e não vai impedir homens de atacar mulheres. Mesmo que a única parte do corpo da mulher à mostra seja a sua sombra, os meliantes irão sexualizar e fetichizar a mesma. Tomemos como exemplo o Egito, país onde o assédio sexual de mulheres se tornou praticamente uma pandemia - estejam elas usando o hijab ou não.

O mito de que há uma correlação entre o hijab e uma baixa incidência de assédio e violência sexual contra as mulheres na verdade acaba por vitimizá-las. Os homens estão fazendo um desserviço às mulheres ao colocar a culpa nas mulheres que não se cobrem, bem como ao insinuar que uma mulher que foi atacada ao usar um lenço na cabeça de certa forma fez alguma coisa para merecer o mesmo. Como ocorre com toda culpabilização da vítima, isso impede as mulheres de falar abertamente acerca de ataques sexuais. Muitos clérigos muçulmanos e cientistas pseudo-sociais - como Zakir Naik, neste vídeo (link em inglês), que é imperdível para qualquer pessoa que deseje aprender sobre o problema - abertamente sugerem ou proclamam que mulheres que não usam o hijab estão pedindo um assédio ou um estupro. Eles chegam ao ponto de correlacionar o direito da mulher usar o que ela quiser no Ocidente com a alta incidência de violência sexual contra as mulheres de lá.

Eles convenientemente ignoram todos os relatórios que demonstram como a violência sexual não é registrada em muitas sociedades islâmicas conservadoras (link em inglês), devido à sua natureza de tabu e ao estigma associado à mesma; ignoram o fato de que a violência sexual leva a mortes por honra de muitas das vitimas todos os anos. 

Pervetidos são pervetidos. Eles irão assediar e cometer violência sexual contra as mulheres que usam o hijab ou uma minissaia porque eles são pervertidos - não porque as mulheres exercitaram seu direito de usar o que querem.                                                                                                

Continuar a perpetuar o mito do hijab mágico apenas faz com que o problema cresça. Não resolve nada, na verdade. Para tanto, nós precisamos conseguir falar abertamente sobre o problema, conscientizar, educar as pessoas, projetar leis contra, e ter delegacias que realmente tomem ação contra os homens que incorrem nesses crimes. Se isso tivesse sido feito nos anos oitenta, talvez a Neelo - ou as milhões de outras vítimas como ela - não precisariam ter que suportar toda a dor na qual viveram por anos. 



                                                                                                                                                 Usar ou não o hijab é uma escolha pessoal que precisa ser protegida.  Muitas mulheres que o utilizam escolhem fazê-lo e se sentem felizes com o gesto de modéstia e religiosidade. Entretanto, isso não se trata do hijab ou da escolha da mulher. Trata-se de pseudo-ciência e misoginia. 
                                                                                                                                               Trata-se do fato de que mulheres que usam o hijab não estão mais seguras que mulheres que não o usam. Trata-se do fato de que precisamos de proteção real às mulheres nas sociedades islâmicas, em casa, nas ruas, e no ambiente de trabalho - não apenas em trajes milagrosos.