Salões de beleza e racismo: pela descolonização das profissões

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Por Flávia Simas crespos Eu sigo o blog de uma moça que é metade portuguesa e metade cabo-verdiana. Já tive o prazer de conhecê-la pessoalmente, e posso afirmar sem a menor sombra de dúvidas: além de linda, ela irradia uma energia maravilhosa. Eu sinto a necessidade de reforçar que ela é uma mulher forte, decidida, que sabe o que quer, e sabe exatamente de onde veio e tem pelo menos idéia de para onde vai. Coisa rara nesses dias. Essa amiga nos relatou outro dia em seu blogue o quão maltratada ela foi em um salão afro em Portugal. E o episódio me fez tentar juntar umas palavras aqui. Não será nada muito elaborado, mas eu sinto a necessidade de escrever um pouco sobre a mente colonizada. Estamos em Novembro, e com ele a temperatura do Brasil se eleva, juntamente com a consciência negra, que se faz ouvir por todos os cantos - ou pelo menos se tenta fazer ouvir por todos os cantos - nessa coisa incrível (ou não) que denominamos internet. Acredito que toda pessoa afro-brasileira se identifique, pelo menos um pouco, com essa história de se sentir destratada em salões de beleza. E o sentimento que fica quando o desdém vem de alguém parecido conosco? Eu posso garantir que não é nada legal, pois tenho inúmeros exemplos assim. A penúltima vez que cortei meu cabelo em um salão no Brasil é um deles. Certamente não me esquecerei do tom do cabelereiro, ao me oferecer ~tratamentos~ que envolviam mais uma vez me livrar dos meus cachos, e seguir escrava da chapinha. Ao responder que eu amava meu cabelo natural, ele me respondeu em tom de deboche que era melhor eu viver na Europa então. Basicamente, meu cabelo seria uó e somente a Europa para gostar dele. Ele não era branco. Agora voltando ao caso da nossa amiga, quando li seu texto não pude deixar de pensar na frase “os piores racistas são os próprios negros”. Ao perceber que este pensamento, muito difundido pelo Brasil até, não passa de uma solução simplista para um problema massivo e endêmico, resolvi tentar raciocinar um pouco sobre o tema: cabelereiros, mais especificamente, cabelereiros que NÃO são brancos e ainda assim insistem em inferiorizar e maltratar pessoas não-brancas. Acredito não existir resposta única para o caso. Mas fico pensando o quanto de pensamento colonial existe nisso. Parece que estamos caminhando a passos lentos quando se trata de descolonizar as profissões. Uma onda identitária tem varrido a internet, as pessoas têm se mobilizado mais e buscado cada vez mais conhecimento. Saber o que se é empodera. Entretanto, quando pensamos nos âmbitos das profissões, a coisa caminha a passos muito lentos – em alguns casos, podemos afirmar que elas não caminham de maneira alguma. Salvo algumas exceções – eu sou uma delas e você que está lendo provavelmente também é – a mulher negra ainda é a mais preterida quando se trata de atendimento – qualquer atendimento. Nunca se espera que a mulher negra busque algum serviço. Ela ainda é vista largamente como a serviçal. Exemplos? Ah, eles existem aos montes. O que salta à mente enquanto eu escrevo este texto é um artigo que li tempos atrás, que tratava da primeira médica dermatologista do Brasil que se especializa na pele negra . Mesmo na Europa, já fui a vários salões que simplesmente me mandaram para casa, pois não lidam com ‘cabelos étnicos’. Agora você pensa, salão de beleza é algo supérfluo, né. Classe média sofre ficar reclamando disso. A resposta é sim, e não. Porque por mais supérfluo que seja ir ao salão, trata-se de um exemplo emblemático do quanto ainda temos que caminhar enquanto humanidade para que todos tenham acesso aos serviços que acharem necessários. É péssimo ter que ir ao salão e ouvir que a não ser que você deseje fazer um alisamento, não há espaço para a sua pessoa ali. Agora imagina quando levamos isso ao nível mais elementar, como atendimento de saúde, por exemplo. Já sabemos que as pessoas se assustam quando se deparam com médicas “que não parecem médicas”, pois o pensamento colonial e escravocrata ainda é muito presente na nossa sociedade. Mas, e quanto às pacientes que não parecem pacientes? A Jarid já tratou disso aqui. Mas, voltando um pouco ao curioso caso de profissionais negras que maltratam outras mulheres negras. Seria simplesmente curioso ou algo previsível, considerando-se o pensamento colonial e escravista que ainda reina no mundo? Eu acredito que seja algo previsível. Sabe quando alguém afirma que não existe coisa pior que mulher machista? Pois então. Além de o raciocínio ser falho, ele também se esquece que sistema opressor nenhum funcionaria se a pessoa oprimida não estivesse de alguma forma convencida de que aquilo é a única forma possível de se viver nesse mundo. Um parêntese importante que precisa ser aberto aqui: também não podemos excluir a possibilidade de, nesses casos, a pessoa oprimida estar apenas tentando se livrar um pouco da opressão. Sim, parece estranho, mas muita gente no Brasil ainda acredita que a melhor forma de se evitar o racismo é se passando por branco. Se o cabelo é um problema, alisar representa uma solução simples e eficaz para se evitar o bullying racial. Um pensamento que, mesmo que as pessoas não percebam, está alinhado à filosofia eugênica de embranquecimento da nação (e que se reflete também na afirmação de que a raça da família está sendo purificada). E é um pensamento que acontece muito cedo na vida da pessoa negra no Brasil. Recordo-me de chorar muito por ter sofrido bullying racista na escola. Em um dado momento, implorei que minha mãe ‘consertasse’ meu cabelo (sim, eu tinha 6 anos e queria desesperadamente alisar). Ela me levou a um salão para alisar. E gastou uma boa grana durante toda a minha infância e adolescência alisando meu cabelo para me proteger do racismo nos lugares. Não adiantou, mas a narrativa ainda é muito forte e levou muito tempo até que eu me convencesse que ela não funcionava. Dessa forma, eu penso (e não sei se está claro neste texto), que a questão das profissionais negras que não gostam de atender outras negras porque “é difícil” ou porque elas não desejam mais alisar seus cabelos está alinhada à ótica colonial. É muito difícil se livrar dela. E, por outro lado, não podemos esquecer que somos espelhos. Muitas vezes estamos somente a refletir a imagem desses profissionais para eles mesmos. E a verdade dói. Daí a agressividade. Mesmo que estejamos libertas de padrões de beleza que nos algemaram por anos, muitas dessas profissionais encontram-se presas a tais construtos, e nem sempre é fácil ver alguém feliz e satisfeita com a própria imagem recusando certos serviços e ainda por cima, questionando os mesmos. Por favor vejam que eu não estou a tratar do caso das mulheres negras que preferem seus cabelos alisados. Eu acredito na escolha e sempre defenderei que a mulher pode fazer o que quiser com a sua aparência. Estou apenas refletindo sobre salões de beleza. Sobre aquele momento surreal em que a cabelereira negra não apresenta boa-vontade, tampouco inclinação para tratar bem quem não se adequa ao padrão. Isso acontece muito em certos lares. Já li inúmeros relatos de meninas em transição capilar reclamando de familiares negros que não apoiam que elas usem seus cabelos naturais. Não trata-se simplesmente do ‘pior racismo que existe’. Trata-se dos efeitos de séculos de subjugação. Estamos caminhando lentamente para a descolonização de mentes. Isso não ocorre do dia para a noite. Ainda há muito o que ser feito. O primeiro passo já está dado: mais e mais pessoas assumindo seus cachos naturais, fazendo tutoriais de youtube (eu mesma tenho alguns). Agora está na hora de levarmos o processo adiante. Ele precisa, mais que urgentemente, atingir as profissões. Todas as profissões.