Teu privilégio não é minha prisão

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Tantas vezes falamos aqui no blog sobre "privilégio" e percebemos que nem sempre essa noção foi plenamente compreendida. Por isso tentarei jogar alguma luz sobre a questão.

O privilégio é uma vantagem. Não é algo para se envergonhar, é apenas fruto de certas características. Um exemplo: eu sou uma pessoa que fala, escuta, possui todos os movimentos e dispõe de uma boa visão (na verdade tenho um probleminha de vista que é corrigido com lentes). Possuo portanto, a vantagem de jamais me preocupar em tatear o piso antes de dar o próximo passo, pois posso enxergar o caminho adiante. Não me preocupo em frequentar espaços públicos em que uma cadeira de rodas possa circular livremente, pois posso andar. E nunca aprendi a linguagem de libras, pois posso falar e ouvir, portanto, me comunicar sem o uso de sinais.

Muitos privilégios (a maioria, acredito eu) são construídos culturalmente. Ser branco traz uma série de privilégios em relação à ser negro. O que fica evidenciado a cada vez que colocamos a raça diante do elogio, por exemplo. Já parou para pensar porque quando se elogia uma mulher branca dizemos apenas que é uma mulher bonita, mas quando o elogio é direcionado à uma mulher negra, ela se torna uma "negra bonita"? Ou ainda, já tentou imaginar o motivo pelo qual se um homem branco dirigir um carrão muita gente achará que ele é rico, mas que se o mesmo carro for dirigido por um negro, muita gente achará que ele é apenas o motorista? É a expressão do privilégio do branco, não ser discriminado por sua cor (Sobre o privilégio branco, por favor ler esse link, esse e esse).

O privilégio masculino também é cultural. Numa sociedade tão marcada pela cultura do estupro, é uma vantagem dos homens, sair à noite e temer crimes patrimoniais. Traduzindo, temer ser roubado. Uma mulher quando sai à noite teme ser estuprada. Aliás o medo do estupro que uma mulher sente é tão grande que isso rege as nossas vidas desde muito jovens e não nos abandona nem na velhice.

E aí você me diz, "MAS CALMAÍ GIZA, se não é para se envergonhar do privilégio, porque tantas vezes vocês, aqui do Ativismo de Sofá, o criticam?" Por três motivos, o primeiro é a construção de cenários que se formam em torno de um privilégio e que pode ser muito díspar. E isso revira meu sensível estômago. Uma situação que se forma em torno do privilégio masculino: recentemente, li que a escritora de romances Margaret Atwood perguntou a um grupo de homens (na minha leitura não estava especificado se eram apenas homens cis) porque os homens se sentem ameaçados pelas mulheres, eles responderam que tinham medo que elas rissem deles. Quando perguntou a um grupo de mulheres porque elas se sentem ameaçadas por homens, elas responderam que têm medo de serem assassinadas. A polaridade das respostas gera insatisfação e revolta em quem é mulher.

O segundo motivo é que os privilégios citados acima são abstratos. No sentido que não estão escritos, codificados. Mas há privilégios escritos. Ilustrando melhor, a nossa Constituição Federal, ainda não permite o casamento igualitário. Dando a um grupo, os heterossexuais, um enorme privilégio em relação a outro, os LGBTs. Um outro exemplo é o sufrágio feminino, no Brasil conquistado há apenas 80 anos.

O terceiro motivo é porque em muitos casos, na visão da pessoa que é detentora das vantagens acima citadas (e outras tantas), o privilégio se torna a sua noção de "normalidade". Ou seja, a pessoa não consegue sentir empatia por grupos não privilegiados em questões tocantes apenas a eles, gerando uma perspectiva distorcida e parcial. Pessoalmente esse motivo é o que mais me incomoda, e também é o que mais gera discussões improfícuas. Alguns exemplos de manifestações privilegiadas nesse sentido:

Quando um homem afirma que as mulheres não possuem espaço na política porque preferem seguir outras carreiras, ele se esquece que participação política muitas vezes depende de investimento. E que nem sempre os investidores estão interessados em dar crédito às mulheres. Porque a sociedade costuma incentivar mulheres à dedicar-se ao âmbito privado, relegando ao homem o âmbito público. 

Toda vez que um branco diz que as cotas raciais nas universidades são um privilégio dos negros, ele ignora a indiscutível participação ínfima dos negros em espaços acadêmicos (ainda mais se considerarmos que a maioria da população brasileira é negra), um resquício de uma sociedade que vergonhosamente aboliu a escravatura por meio formal há 124 anos.

Quando um heterossexual alega que não se incomoda com LGBTs desde que eles não andem de mãos dadas, não beijem em público, não cheguem junto, eles se esquecem que é socialmente aceitável que um heterossexual faça todas essas coisas. 

E é claro, há os privilégios que o dinheiro proporciona. Uma casa própria, um carro, um computador, um bom celular, boa educação, viagens e etc. Nenhum problema em possuir bens materiais, o problema é esquecer ou desvalorizar quem não possui ou está em situação de classe social abaixo da sua. Daí podemos extrair por exemplo as questões trabalhistas. Quando o(a) patrão(patroa) exige que a empregada durma no serviço, será que ele(a) pensa no absurdo que seria ele(a) próprio(a), dormir no escritório em que trabalha, voltando para casa apenas no final de semana? Possivelmente, não.


Os exemplos acima tratam de privilégios sobre minorias, mas mesmo entre minorias há privilégios. Não é porque fazemos parte de um grupo em desvantagem que temos a autoridade de falar sobre o sofrimento alheio. Aqui há um texto excelente falando dos privilégios da mulher branca em relação à mulher negra.

Por Arnaldo Branco
É preciso entender que embora possuir um privilégio não seja motivo de vergonha, tampouco é motivo de orgulho. Quando uma pessoa branca anda por aí com uma camiseta "100% branco" ele está exaltando algo que não gera motivo para orgulho. É muito diferente de alguém que exalta sua raça negra, pois ser negro significa um histórico de opressão e normalmente de luta e conquistas condicionadas pela raça. Se orgulhar de ser heterossexual (uma modinha que tá rolando aí nas redes sociais) é o equivalente a se orgulhar de uma facilidade, de uma condição que não impõe desafios. Eu acho até engraçado (apesar de triste), que eu tenha que escrever sobre isso, porque me parece realmente muito óbvio. 

O privilégio é cumulativo e quanto mais privilégios uma pessoa possui maior a possibilidade dela possuir a visão distorcida da qual falei antes. Tente visualizar um muro cuja altura aumenta à medida que os privilégios se acumulam. E para algumas pessoas o muro é tão alto que é impossível enxergar o que está do outro lado. 

Retomando um pouco a idéia do título desse texto, o privilégio do grupo não é prisão de outra pessoa pois não regula a vida, os pensamentos, as atitudes dos outros. Rever seus próprios privilégios, nem sempre buscando exterminá-los, pois muitas vezes isso nem é possível, mas entendê-los faz parte do processo de compreender o outro. Enquanto você não conseguir determinar onde residem os seus privilégios, você será incapaz de aceitar que as pessoas que não detêm as mesmas vantagens que você têm outra perspectiva sobre as suas próprias vidas e que é importante demais que você as ouça mais do que questione. Não são os seus privilégios que definem e norteiam a vida dessas pessoas. Como eu disse no meu post "não me ensine a militar" somente o oprimido sabe onde e como o calo aperta. 

Obs.: Se eu não me fiz entender como eu gostaria e você ainda tem interesse no assunto, eu sugiro muito esse texto aqui.