Violência simbólica e agressores em potencial

Escrito en BLOGS el

Quando se fala em violência contra a mulher, a indignação é consenso. Por sorte, já chegamos em um nível de repugnância social imediata ao imaginar um marido espancando a sua esposa. Particularmente, eu nunca ouvi ninguém dizer em público “se o jantar não está quente tem que bater mesmo!”. E isso é bom. É bom que já tenhamos evoluído a ponto de que a violência doméstica não seja praticada no meio da rua em plena luz do dia e nem motivo de orgulho (converse com suas avós, pergunte como era a vida das mães delas, das vizinhas e se prepare para as histórias que irá ouvir).

Entretanto, esse mesmo tema é extremamente complexo quando a cena em questão não se enquadra no imaginário das pessoas. A indignação que falei só se dá a um nível básico. Como falar de homens que agridem as companheiras é algo muito generalizante, quem escuta se sente à vontade para formar a estrutura que quiser em sua cabeça. E na maioria dos casos, a cena visualizada pelas pessoas é extremamente pré-moldada, existem nela papéis que devem estar sendo cumpridos, caso contrário, não se enquadra. Isso fica muito claro quando ao invés de falarmos de violência de gênero, falamos de exemplos práticos do dia-a-dia. Falamos das mulheres de verdade que foram agredidas e esperamos as reações.

A mulher que não deve ser agredida pelo marido tem um papel muito claro: ela é uma trabalhadora, boa esposa, boa mãe. Ela é casta, mas cumpre sua função sexual para agradar ao marido. Ela faz de tudo para deixar a casa sempre limpa e arrumada, a comida sempre na mesa e de vez em quando, até pede uma ajudinha com a louça, mas deixa passar se estiver na hora da corrida ou do futebol. Nessa mulher não se bate nem com uma flor.

Entretanto, na mesma proporção que não ouço as pessoas dizendo que “mulher tem mais é que apanhar mesmo”, ouço os aplausos às clássicas surras das novelas da Globo. Vez ou outra, uma mulher é agredida, ofendida e humilhada pelos mais variados motivos. A última vilã, Carminha, apanhou de seu marido ao ser “desmascarada”. Essas mulheres, por não se enquadrarem na caixa da “mulher ideal” incutida no imaginário popular pelos mais diversos motivos (desde falta de afeto à raiva incontrolável mesmo), imediatamente perdem o direito à defesa.

Foto tirada pela Lari Schip no Ato pelo Fim da Violência Contra a Mulher em Curitiba.
Eliza Samúdio, que não foi só agredida, mas morta pelo seu companheiro, então, cometeu o terrível crime de: ser vadia. Ela não era casada com o jogador, nem uma “namorada séria”, o que já a deixa fora da caixa da mulher ideal. Não obstante, também já havia se envolvido com pornografia e, bem, era linda de uma forma bem padrão. Me arrisco sim a dizer que se Eliza não fosse uma mulher tão padrão de beleza, não estaria sendo tão julgada por esse aspecto, estaria sim sendo rechaçada publicamente por outro crime: o de ser feia; mas não estaria respondendo tanto por sua sexualidade.

É preciso olhar mais a fundo. Tirar a violência doméstica do campo isolado em que ele se encontra e ver que ela nada mais é do que fruto da violência simbólica. Nessa entrevista, o diretor do filme Amor? fala sobre as relações representadas no documentário. Ele diz que embora todas as histórias de fato tenham a agressão física, ela acaba sendo apenas um ponto, um detalhe. A agressão é o ponto material, fruto de toda uma violência simbólica.
Esse linchamento moral constante que é feito das mulheres divide-as entre as “mulheres de verdade” e as que são qualquer outra coisa (e tenho certeza que se você usa o facebook, já deve ter visto algo do tipo). E aqui é importante falar do chamado “perfil de agressor”, entre muitos outros fatores, um homem que agride jamais bateria em uma mulher... de verdade. Uma mulher que não merecesse, uma mulher que estivesse sempre dentro da caixa da mulher de verdade, que apanha do marido cruel que ele colocou em sua mente. Ele não é um marido cruel. Ele apenas quer as coisas certas.
Do Machismo Chato de cada dia.

Julgar vítimas como possíveis causadoras, merecedoras de sua própria morte é uma demonstração clara de alguém que não acha que o respeito é algo inerente que todos nós merecemos, independente da nossa beleza ou sexualidade, independente de estarmos dentro ou não do padrão moral que o outro julga como correto. “Mulher de verdade” somos todas nós, e quando falamos de “violência contra a mulher”, estamos falando também de todas. Estamos falando, inclusive, dessa violência velada, verbal, psicológica, que constantemente nos julga, destruindo-nos como pessoa e não permitindo que entremos em contato com quem nós verdadeiramente somos por medo. Medo de, de repente, não se sentir mais incluída no grupo das mulheres de verdade, e aí toda e qualquer agressão contra nós será legitimada.

Violência não se justifica, se elimina. E se elimina cortando o mal pela raiz, tirando da nossa cultura toda essa normatização de ódio às mulheres.