Leite: Militares não atendem nem costureira

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Eu discordo de várias abordagens do Paulo Moreira Leite, mas o considero um jornalista que ainda não abriu mão do jornalismo. Leite trabalha em Época, está longe de ser um jornalista petista, não acho que votará em Dilma ou tenha votado no Lula. Mas é impressionante como o simples fato de contar uma história: a da luta de uma mãe para saber a verdade de sua filha desaparecida durante a ditadura militar, torna-o alvo de agressões, de xingamentos por parte de uma direita reacionária e cada vez mais obtusa. Vejam por exemplo este comentário sobre o artigo que postarei a seguir:

Clô: 2 março, 2010 as 16:17

Saco ser censurada! Logo em tópico que fala dos * martires* ( que matavam roubavam etc…) da DITADURA. Dois pesos e duas medidas, antes era um horror agora que é a de vcs é valida. Caindo fora mais uma vez! Só que não volto, isso aqui virou cartilha PETRALHA.

Agora fiquem com o belo artigo 'petralha' de Paulo Moreira Leite.

A luta incomum de uma cidadã comum

seg , 1/3/2010
Por: Paulo Moreira Leite
IsisNão conheci uma moça chamada Isis Dias de Oliveira. Mas lembro de sua foto, de cabelos curtos, traços finos, que chamava a atenção nos cartazes de presos políticos desaparecidos durante a ditadura. Não sei se, antes disso, o mesmo rosto bonito de Isis Dias de Oliveira frequentou outros cartazes, aqueles que identificavam militantes de organizações armadas procurados pela polícia do regime militar, e que costumavam ser exibidos em locais públicos. Minha memória não vai até aqueles rostos em preto e branco, em sua maioria em imagens granuladas, com baixa definição, que se costumava olhar à distância, com temor e uma disfarçada admiração. Isis foi vista pela família, pela última vez, em 1971. Mas chegou a ser vista, com vida, em dependências militares, depois disso. Um médico que colaborava com a tortura, controlando o sofrimento dos presos políticos para impedir que viessem a morrer sem fornecer informações buscadas pelos agentes do regime, chegou a dar entrevistas dizendo que reconhecera aquela moça, formada em piano e diplomada em inglês, que fora aluna de Ciências Sociais na USP antes de entrar na luta armada, nas depedências do DOI do Rio de Janeiro. Mais tarde, num arquivo do DOPS encontraram o nome de Isis de Oliveira numa relação de pessoas “falecidas.” Na semana passada, morreu Felícia de Oliveira, sua mãe. Tinha 92 anos, enfrentava problemas cardíacos, Felícia era avó e bisavó. Isis tinha 31 anos quando desapareceu. Felícia, que era costureira de profissão, passou 38 anos a procurá-la. Primeiro, queria a filha viva. Depois, queria informações sobre as circunstâncias de sua morte. Por fim, gostaria de saber onde fora enterrada. Nada. Por fim, veio o esquecimento. Nos últimos anos de vida, Felícia passou a sofrer do mal de Alzheimer. Felícia de OliveiraNos últimos anos, Isis de Oliveira virou nome de rua e de praça. A família teve direito a uma indenização. Mas ao longo de quatro décadas nossos comandantes militares, os mesmos que querem equipar a Marinha com submarinos nucleares e a Aeronáutica com caças de bilhões de dólares não foram capazes de dar uma explicação a uma costureira. Não puderam fazer um relato, contar uma história. As Forças Armadas tiveram oito comandantes-em-chefe desde que Felícia Oliveira começou a procurar pela filha. De Emílio Médici a Luiz Inácio Lula da Silva, nenhum foi capaz de contar como foram os últimos momentos. Somando cada dia da jornada da costureira Felícia, foram 13.870 dias de silêncio. Imagino como alguém pode atravessar 13.870 noites nessa condição. Tento pensar nas ideias, medos e dores que frequentaram seu pensamento a cada manhã, a cada minuto. Menos de 40% dos brasileiros eram nascidos quando a filha da costureira desapareceu – o último contato foi um telefonema, para a casa de um vizinho. Felícia foi personagem da luta pela anistia e depois pela preservação da memória das vítimas da ditadura. Descobriu que a filha fora alvo de seis processos, acabou inocentada em três e que outros três foram arquivados. Na praça que leva o nome da filha, ela colocou uma mensagem em pedra: “Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim.” É isso. Não sou e nunca fui admirador da atuação da ALN, a organização onde Isis de Oliveira militou. Não tenho uma visão heroica da resistência militar à ditadura e fico até preocupado quando percebo que se cria um ambiente de endeusamento em torno de seus militantes e de algumas de suas ações. Eu acho que os sobreviventes da luta armada ainda devem ao país uma autocrítica sobre sua atuação e seus feitos, gesto que não tem nada a ver com arrependimento ou coisa parecida – mas seria de grande utilidade para educação política das novas gerações. Meio século depois da revolução cubana, que era o modelo político da ALN, o destino da vida em Cuba merece muito mais reflexão do que celebração, concorda? Mas eu acho que aqueles eram tempos difíceis e tumultuados, sem espaços democráticos, quando era preciso saber escolher um lado e agir de acordo com essa opção. Quando se recorda daquela época terrível, é bom pensar que determinadas pessoas tiveram coragem e disposição para agir contra uma situação fundamentalmente errada e inaceitável – e correram riscos em função disso. Por isso essas pessoas são lembradas, mesmo que se possam fazer imensas objeções a sua visão de mundo, seu ideal de país, sua visão de progresso e sua falta de compromisso com a liberdade. O Brasil que temos hoje, com o mais amplo regime de liberdades democráticas de sua história, deve muito à atuação de pessoas como a costureira Felícia de Oliveira. Esse papel precisa ser lembrado e homenageado. Parece trivial mas não é. Mesmo nos anos mais duros, ela foi a Brasília, bateu às portas do Congresso para pedir informações e explicações. Num depoimento sobre aqueles momentos, lembrava-se, feliz, de uma pequena vitória: conseguiu publicar uma carta no Estado de S. Paulo onde relatava seu sofrimento e cobrava providências. Numa iniciativa louca e compreensível, certa vez chegou a ir a Londres, para procurar uma guia de turismo brasileira que, segundo lhe jurava uma testemunha, “só podia” ser Iris. A luta incomum desses cidadãos comuns ajudou a mostrar que se vivia sob um regime inaceitável e sem futuro, por mais que tivesse a força das armas e da violência. Felícia mostrou que, em determinadas circustâncias, o maior papel da história é o mais simples e básico, e se pode aprender até mesmo com os animais: ser mãe. Capaz de enfrentar guerrilheiros que promoviam assaltos a banco, a ditadura não foi capaz de enfrentar cidadãos comuns que estavam à altura de seus deveres. Como ela diz: “Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim”.

É uma frase para nunca esquecer, concorda?