Judicialização das ciclovias: Não há carroça, não há bois, apenas paralisia

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Judicialização das ciclovias: Não há carroça, não há bois, apenas paralisia

Por Alexandre Spatuzza, Revista Sustentabilidade

22/03/2015

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Há algo de podre na democracia brasileira quando, repetidamente, o voto de milhões depositados nas urnas é questionado judicialmente e acolhido por tribunais de todas as instâncias, atendendo ao desejo de poucos. O caso da liminar da 2ª Vara da Fazenda Pública que paralisou o programa de ciclovias na cidade de São Paulo - parte de uma política mais ampla de mobilidade urbana - é mais um destes destemperos que o Ministério Público Estadual impõe ao governo municipal, afrontando, inclusive, a prerrogativa do administrador público de implementar mudanças visando melhorias futuras.

Formalismos legais de direito público são frequentemente instados e listados para judicializar a política e impedir qualquer mudança, alegando defender algum direito difuso. Do ponto de vista da sustentabilidade, isto impõe amarras que fazem impossível uma gestão pública olhar para o futuro e inovar, como é o caso do programa que visa instalar uma rede básica de ciclovias de 400km na cidade São Paulo.

O desenvolvimento sustentável, como sabemos, é suprir as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade de gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades. Dar voz a esta geração futura hoje requer enfrentar os que querem suprir apenas as suas necessidades atuais. Tal imediatismo tem sido praxe no comportamento do ser humano desde a revolução industrial no século XIX e que nos trouxe à situação atual de degradação urbana e ambiental, por causa de um hiperconsumismo e de um imediatismo na satisfação de nossos desejos individuais, tendência destruidora que que a Promotoria da Habitação e Urbanismo deveria evitar.

Diante do crescente caos no trânsito paulistano, o ainda candidato petista Fernando Haddad, propôs focar no transporte coletivo – com a implementação de faixas exclusivas e corredores de ônibus – e promover a expansão de uma malha cicloviária, entre outros programas estruturantes que hoje constam no Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal em 2014.

Eleito, mal o programa começou a ser implantado, as críticas começaram a surgir. Diuturnamente na grande imprensa e nas redes sociais o debate se alastrou com vozes de especialistas e munícipes instados pelos meios comunicação a criticar e atuar contra a implantação do programa. Criticas às vezes técnicas, mas, na maioria, visando manter o status quo. Críticas que, mais frequentemente do que seria razoável para um debate franco, eram de viés político partidário.

Como na copa, todos os paulistanos viraram engenheiros de trânsito.

Chegou-se ao momento mais triste do debate quando uma acadêmica da área de comunicação, com reconhecimento internacional, ganhou notoriedade por escrever em uma rede social que a cor das ciclovias visavam promover o partido do prefeito por ser a mesma!

A humilhação de dita acadêmica não foi maior porque os meios de comunicação não só repetiram suas queixas, como se tivessem alguma verossimilhança, mas pouco divulgaram a resposta da CET que afirmou a cor ser um código de trânsito internacional, sustentando, assim, mais uma lenda urbana.

O debate sobre o futuro da cidade foi sequestrado, portanto, pelos seus opositores, quaisquer que sejam suas razões, achacando, assim, o direito difuso das gerações futuras.

A visão de mobilidade urbana hoje baseia-se no conceito de transporte multimodal e da integração dos vários meios para o cidadão poder escolher como exercer o seu direito constitucional de ir e vir e à cidade. Esta visão dá prioridade para a complementariedade entre os modais de menor impacto ambiental e urbano e ao transporte público de massa. Trocando em miúdos, políticas que visam desestimular o transporte individual por veículo automotivo.

Nos últimos 10 anos, todas as grandes metrópoles no mundo, não sem resistência, têm incluído às opções de transporte coletivo sobre rodas e sobre trilhos (inclusive na chuvosa Londres, na gelada Amsterdã, na caótica Roma e na inclinada San Francisco). Esta visão só se sustenta no preceito básico de oferecer escolha e é, portanto, dever do administrador público urbano reorganizar a cidade para oferecer estas escolhas, seja pela integração financeira, como é o bilhete único, seja pela oferta de infraestrutura necessária para se exercer esta opção.

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(fotos: ciclovias na chuvosa Londres e na inclinada São Francisco)

Após várias tentativas fracassadas de judicialização do programa de ciclovias, mas após a criação de uma narrativa nos meios de comunicação largamente contrária às ciclovias ou a qualquer administração pública, a 3ª Promotora de Habitação e Urbanismo, Camila Mansour Magalhães da Silveira, entrou com uma ação civil pública pedindo não só a paralisação do programa, mas também a reconstrução de todas as vias de rolamento e calçadas onde as ciclovias ainda não estavam terminadas.

Ao ler as mais de 50 páginas da ação vemos que a promotora deu um viés técnico jurídico a toda uma narrativa contrária que vem sendo gerada e veiculada na imprensa e nas redes sociais. É estarrecedor perceber que um por um dos mais falaciosos e falsos argumentos publicados em seções de comentários no Facebook são traduzidos em juridiquês pela promotora.

Sem comprovação técnica, e baseando-se em fotos de trechos de notório erro técnico, a promotora alega que as ciclovias são responsáveis por atrapalhar o trânsito da cidade, que não houve planejamento e nem debate público, que tira prioridade do transporte de massa e fere preceitos constitucionais de eficiência pública. Ela diz que foi motivada pelas reclamações de vários munícipes por escrito, como se estes defendessem os interesses da maioria ou, por si só, representassem os direitos difusos de todos os cidadãos, inclusive dos ciclistas e os dos futuro ciclistas.

Ela chega ao ridículo de escrever que até a segurança dos próprios ciclistas está em perigo pelo programa de ciclovias, o classificando com vários adjetivos pejorativos!

E assim pede ao juiz que pare todo o programa, exigindo a reconstrução da malha original de todos os trechos não acabados e a elaboração de estudos básicos, de engenharia e de projetos executivos, além de estudos de impacto viário e de comprovação de demanda. Não só isso, em sua soberba, a promotora pede que em seis meses a CET faça outros tantos estudos técnicos e de engenharia para... reestabelecer o traçado original antes da ciclovias!

Todo este dispêndio que seria imposto ao erário municipal (inclusive custas judiciais) é contraditoriamente justificado com a argumentação de que o programa 'açodado' de ciclovias fere o princípio de economicidade!

A promotora reproduz como prova matérias de jornais e fotos de uma dezena de trechos de ciclovias com sérios problemas, imagens mais do que manjadas pelos usuários do Facebook que debatem este tema.

O juiz caiu na ladainha. E ao invés de decidir a reparação apenas dos casos flagrantemente errados das ciclovias – que em 200km é a menor parte – parou todo o programa. O alento, no entanto, é que o juiz refutou o argumento de que as ciclovias são obras de engenharia. Ele reafirmou que são apenas obras de manutenção e mudança de faixas de rolagem e, portanto, não necessitam nem de licitação, nem de estudos de engenharia e nem de projetos básico e executivo. Pediu, entretanto, estudos de impacto viário.

Mas o estrago está feito. Os tais difusos interesses citados talvez foram satisfeitos, mas reforçou-se a narrativa crescente de desqualificação de qualquer iniciativa vinda de um órgão público, alardeando a visão de que todos são desprovidos de capacidade de planejamento e visam, apenas, retornos políticos partidários imediatos.

No fundo, é isso que a promotora argumentou, com exigências descabidas para paralisar um programa que vem mudando São Paulo a olho nu.

É bom lembrar, também, o ineditismo da promotora que não hesitou em jogar os usuários de transporte público contra as ciclovias, como se elas interferissem no sistema de transporte público e não fossem complementares.

Poder-se-ia continuar a refutar os argumentos ditos técnicos da Dra. Mansour ad nauseum, como o fato de ela não comprovar por estudos técnicos que as ciclovias são as responsáveis pela piora no trânsito, mas, o que é mais importante, é que transparece na ação um açodamento em manter o status quo para não mudar o ciclo vicioso de que não se poder mudar algo antes que tudo seja mudado.

Não há carroça, não há bois, apenas paralisia.

Enquanto isso, vemos as ruas se enchendo de bicicletas e, por consequência, vemos o paulistano criando uma nova relação com o espaço urbano, resultando em vários movimentos urbanos, inclusive a crescente mobilização a favor do parque Augusta. Vemos, nos finais de semana, milhares de usuários nas ciclofaixas e ciclovia nos domingo. E vemos, sobretudo, pesquisa após pesquisa mostrarem uma ampla maioria de paulistanos apoiando o programa.

A nossa democracia, jovem dizem uns, parece já estar apodrecendo. São ações como estas, que não visam nem o debate, nem a melhoria das políticas públicas e que não se utilizam de prerrogativas de negociação que a estão destruindo, criando um autoritarismo tecnicista e judicial a favor de direitos difusos imediatos, sem olhar para o futuro e nem considerar o desejo de mudança de milhões.

No mesmo dia em que o juiz concedeu a liminar, mais de 80 ciclistas foram à Av. Paulista protestar, palco de várias mortes de ciclistas. As mais de 10 entidades de ciclismo urbano e de outros direitos à cidade subscreveram um manifesto contra a decisão e, sobretudo, declararam que não foram nem consultados pela promotora que tanto reclamou de falta de oitiva na instalação das ciclovias. Os dados e os fatos sobre o uso atual das ciclovias constam do manifesto compilado por estas entidades, e que continua a ganhar adesão.

Mais de um terço dos manifestantes naquela noite começaram a andar regularmente de bicicleta pela cidade após o início do programa e estavam indignados, pois, silenciosamente, têm consciência que vêm mudando a paisagem da cidade.

A promotora precisa entender que eles não são minoria, eles são pioneiros, abrindo caminho no caótico debate sobre mobilidade na cidade de São Paulo.

A promotora decerto não consegue olhar o futuro e nem os direitos difusos das gerações futuras. Diz a prefeitura que já são 500 mil viagens diárias de bicicleta na cidade e estão aumentando. A demanda por ciclovias é crescente, mas nenhum estudo de demanda vai comprovar isso. No entanto, é um fato recorrente em todas as metrópoles: começa-se com uns poucos, mas, após completo o programa, outros aderam e, assim, melhora-se o transporte, a cidade e a saúde da população.

Do ponto de vista da sustentabilidade, a perda foi imensa. O ministério público, que deveria defender mudanças constantes para melhorar a vida do cidadãos, apenas defende a manutenção do status quo, judicialmente engessando as possibilidades de mudar a narrativa sobre nossa organização social, política e econômica.

A ação é uma peça de propaganda contra o estado indutor de mudanças e a favor do estado mínimo, do direito individual do proprietário de carro e da opção pelo deslocamento por meio de transporte automotivo individual.

Se não fosse assim, a promotora teria escolhido outras opções ao litígio. Ela poderia ter escolhido o caminho do diálogo, da reparação por meio de TACs (termos de ajuste de conduta) dos casos flagrantes de má engenharia, da busca de contribuições de entidades que defendem a mobilidade plural na cidade e poderia ter fomentado todo um novo debate qualificado.

Mas a promotora escolheu atender aos e-mails de poucos contra o voto de milhões e ignorar o direito de milhões mais no futuro. E assim fez um desfavor para a cidade, para o meio ambiente, para o futuro e, sobretudo, para a democracia.

*Alexandre Spatuzza - é jornalista especializado em energias renováveis e sustentabilidade e é criador da Revista Sustentabilidade e co-fundador da Agenda Sustentabilidade.