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Crescidinhos, série da Netflix, é especialmente para os pais

"Minha primeira tarefa", no Brasil traduzida como Crescidinhos, é uma série da TV japonesa com crianças de 2 a 5 anos enfrentando grandes desafios pela primeira vez e sem ajuda de adultos.

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O Experimento é controlado, claro, pois os pais japoneses não são malucos de deixarem uma criança de dois anos ir às compras sem que muitos adultos estejam por perto ou uma dupla de 5 anos andarem pelas ruas de Tókio para levar algo para a avó e comprar fraldas para um dos irmãos.

Vemos a todo momento uma equipe imensa de homens e mulheres filmando as crianças, no entanto, para todas elas, a experiência de realizarem uma primeira tarefa que envolve muitas vezes trajetos longos, carregar pesos, lembrar os itens de compra e até mesmo pegar um ônibus e saber descer no ponto certo é um sinal de que são capazes, que são corajosas, que podem!

Estou falando da série que além de conter uma dose cavalar de fofura, ensina aos pais o que é educar para a autonomia.

Tarefas e afeto

Nesta série japonesa produzida desde os anos de 1990 cada episódio traz uma criança que é estimulada a realizar uma tarefa. A maioria delas é entregar um objeto a algum dos pais, avós ou vizinhos distantes, fazer compras, buscar um objeto como um relógio no conserto. Nem todas estão preparadas para andar dois quilômetros e comprar um buquê de flores do seu tamanho para colocar no altar da avó morta. Algumas resistem, algumas precisam refazer o trajeto duas vezes para cumprir a tarefa. Mas todas elas estão completamente comprometidas, porque são estimuladas a ajudar o pai, a mãe, comprar maçãs para a primeira papinha da irmã bebê ou fraldas para o bebê. Elas são estimuladas a viver em sociedade, a serem gregárias e solidárias. Enfim, são estimuladas com afeto a serem úteis no seio familiar.

Educação para a vida

Além de uma viagem por diferentes regiões do Japão a série nos convida a refletir sobre a educação para autonomia.

Muitas habilidades das crianças são desenvolvidas e quase sempre elas precisam fazer escolhas, resolver um ou mais problemas que não estavam no script. Há um episódio, talvez o de maior desafio e eu particularmente acho que os pais exageram na tarefa. Nela,  um menino de 4  anos tem de levar 4 peixes inteiros para uma peixaria cortar sashimi, tem de comprar frutas e leite. Ele mora numa pirambeira. Muita coisa acontece no caminho e ele precisa solucionar todos os problemas. A alça do isopor se rompe e os peixes caem na rua. Ele tenta pegar os peixes pesados e escorregadios que escapam de suas pequenas mãozinhas. Ele pensa em chamar a mãe, mas um gato espreita os peixes. Ele se incomoda com o sujar as mãos. Mas ele precisa levar os peixes e trazer o sashimi para o jantar. Seu pequeno cérebro é colocado a funcionar e a descobrir uma tecnologia para resgatar os peixes. Ele não consegue colocar as alças de volta e pede ajuda. Como se este desafio fosse pouco, próximo à peixaria novamente as alças se rompem e lá vão os peixes pescados pelo pai de novo ao chão. Ele já vivenciou o problema e no melhor estilo da Pedagogia para a Autonomia freireana, o menino que fez escolhas anteriores, tomou decisão, retoma o aprendizado de sua experiência e chega com os peixes para o corte. Na volta mais desafios: ele carrega duas grandes maças, tangerinas, duas latas de leite grande e os 4 peixes cortados em fatias para o sashimi. Lembre-se, ele mora num morro. Ao subir com tanto peso para o seu frágil corpinho ele bota as sacolas no chão e as maças rolam ladeira abaixo, por duas vezes!

Tarefa cumprida, pais orgulhosos, crianças felizes

A chegada das crianças é um momento emocionante. Mesmo que elas não consigam cumprir todas as tarefas são elogiadas, aqueles pais aflitos que aceitaram participar do experimento sorriem, cumprimentam seus pupilos orgulhosos. As crianças visivelmente transbordam alegria e se não conseguem, frustração.

Aqui precisamos nos voltar novamente para o significado de  educação para a autonomia. Na educação japonesa, as crianças não são submetidas a provas na escola. Até ao menos os 3 primeiros anos do ensino fundamental o foco da educação  é a formação cidadã, o viver em coletividade, a solidariedade, o contato com a natureza (no último episódio um menino para no trajeto de volta para pegar uma garrafa plástica em seu bosque e segue com ela até o lixo de casa). Assim, as crianças se frustram com elas próprias, não com a expectativa dos adultos. Elas querem acertar, querem cumprir a tarefa, não por pressão, mas para provarem para si mesmas que podem fazer. 

A primeira tarefa é um rito de passagem na primeira infância.  O erro é parte do processo e todas elas são estimuladas pelos pais a tentar de novo. Um deles chega a acompanhar o casal de irmãos até o ônibus de compras que sobe a montanha isolada para vender produtos industrializados numa região erma repleta de campos de arroz e sem nenhum mercado.

Quando as crianças vencem o medo diante do fracasso,  recomeçam o processo e conseguem realizar a tarefa,  seus olhinhos brilham, seu corpo inteiro transborda alegria.

Eu posso, eu consigo, eu sou corajosa/corajoso

Nos 20 episódios da série Crescidinhos, os microfones são escondidos dentro de uma pequena bolsinha que elas levam no pescoço junto com o chá e vamos ouvindo suas dúvidas e seu auto estímulo para se auto encorajarem com as palavras que ouvem de seus pais.  Todas essas bolsinhas contêm amuletos que dizem muito para cada uma delas. A menina que chora tem uma expressão criada pelo pai para que ela possa parar de chorar e controlar sua raiva, frustração, a menina tímida tem palavras de incentivo.

Educar as crianças é responsabilidade de todos os adultos da coletividade

A série exibe episódios gravados em 2008, 2009, 2011 e 2019. As crianças mais velhas percebem a presença da equipe de filmagem que precisa ter um preparo físico imenso já que muitas correm, sobem mais de 200 degraus numa rapidez impressionante. Algumas conversam com a equipe, pedem informação ou querem saber quem são aquelas pessoas. Nas pequenas cidades todos os adultos do percurso sabem que a criança está cumprindo sua primeira grande tarefa de fazer algo que sempre fazem com o pai ou a mãe só que desta vez arriscando-se sozinhos.

Hannah Arendt nos ensina que as gerações futuras serão o que os adultos da geração presente fizeram por elas. Ela nos convida, a todos nós, sermos responsáveis pelas crianças, pelos mais jovens. A educação do cidadão é uma tarefa da coletividade.

A série é um convite a todos nós que admiramos as formalidades da cultura japonesa como o respeito das crianças e adolescentes pelos mais velhos, a incrível escolarização daquele país, o respeito às suas principais tradições, a repensar nossa educação familiar. Criamos na classe média brasileira príncipes e princesas que demoram a aprender a se calçar e que não pegam um copo de água, pois é mais fácil pedir para empregada. Criamos príncipes e princesas que são escoltados à escola nas filas duplas, ao judô, ao futebol ao balé.

Morremos de medo de deixar nossos filhos pegarem um ônibus e metrô mesmo quando são adolescentes.

Educar para autonomia exige de nós paciência, muito ensinamento, lidar com os erros que são parte do processo.

Estagiei em algumas creches na periferia da cidade de São Paulo e era muito impressionante ver a autonomia de crianças que aos dois anos se alimentavam sozinhas, iam ao banheiro sozinha, calçavam seus sapatos sozinhas. Trabalhei em escolas de elite onde crianças de 4, 5 anos não faziam todas essas tarefas sem auxílio. Pensemos nisso. Só conseguimos transformar nossa sociedade combatendo esta imensa desigualdade reproduzida desde a primeira infância. Centremo-nos nas experiências estimuladoras do enfrentar problemas, lidar com os erros, tomar decisões. Só assim nossas crianças desenvolverão responsabilidades e serão verdadeiramente livres.