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A coluna de Fernando Haddad, publicada na Folha de S. Paulo em 4 de janeiro, merece leitura atenta. Não há nenhuma ideia original expressa nela, muito ao contrário. Vale pela importância do autor num passado recente.
Haddad se dispõe a discutir a possível existência de uma burguesia industrial brasileira e – em existindo – se ela teria algum projeto nacional.
O assunto empolga o debate político no país desde pelo menos o final dos anos 1920. É tema complexo, que Haddad trata com um amontoado de ideias desconexas, meias verdades e conceitos liberais mambembes.
Há algo que grita em seu texto. É a total ausência de um sujeito fundamental em qualquer análise desse tipo, o Estado. Embora existam embriões de uma burguesia industrial em nosso país desde as duas últimas décadas do século XIX - quando a oligarquia agrária do sudeste passou a investir parte de seu excedente em atividades fabris urbanas, impulsionada pelo advento do trabalho livre -, a constituição dessa classe se dá com a Revolução de 1930.
O primeiro governo Vargas, com claro projeto industrializante, cria, de cima para baixo e a partir do Estado, uma burguesia lastreada em fortes subsídios, protecionismo e crédito. Os sujeitos do projeto nacional-desenvolvimentista seriam o Estado, o capital externo e o capital nacional (como sócio menor, mas decisivo). O raciocínio, largamente conhecido, sequer é insinuado nas linhas do professor do Insper.
Para Haddad, a queda da participação da indústria de transformação no PIB não tem “nada a ver (…) com desindustrialização”. E vai além: “A participação da produção industrial mundial no PIB mundial vem perdendo importância, sobretudo em relação ao setor de serviços, que ganha terreno”.
A afirmação não é corroborada por dado algum. É pura opinião do articulista. Se ele se desse ao trabalho de checar informações do Banco Mundial, veria que, apesar do crescimento global da economia, a tendência consolidada entre 2010 e 2018 é de estabilidade na relação entre os três setores, agricultura, indústria e serviços (http://wdi.worldbank.org/table/4.2). Assim, o recuo relativo da indústria no Brasil é muito preocupante.
Pior: Haddad, de forma irresponsável, investe contra os trabalhadores que defendem o emprego industrial: “São alvos fáceis dos que pregam protecionismo e xenofobia”.
Não contente com isso, Haddad parte para a lacração, como se diz nas redes sociais: “O guru dos industriais à época [anos 1930] era um fascista romeno, Mihaïl Manoïlescu”.
Manoilescu (1891-1950) era de fato figura controversa. Foi ministro da Economia e das Relações Exteriores e personalidade proeminente nos debates econômicos da Romênia dos anos 1930, quando o país agrário se batia por uma diretriz de planejamento industrializante. No final dessa década, tornou-se próximo ao fascismo.
O historiador estadunidense Joseph L. Love lembra que “Devido a sua simpatia pelo Eixo, os trabalhos de Manoilescu foram banidos pelo regime do pós-Guerra, mas uma geração mais tarde, seus trabalhos econômicos, que anteciparam muitas das reivindicações, aspirações e libelos do Terceiro Mundo, foram mencionados em publicações oficiais como importantes contribuições romenas para a análise do subdesenvolvimento”. Seu livro “Teoria do protecionismo e da permuta internacional” foi publicado pelo Centro das Indústrias do Estado de São Paulo em 1931, por iniciativa de Roberto Simonsen, o mais importante industrialista brasileiro da primeira metade do século XX.
Desqualificar o desenvolvimentismo industrialista como vertente de política econômica equivale a atacar a CLT por suas semelhanças com a legislação trabalhista da Itália de Mussolini. O liberalismo – à direita e à esquerda – fez isso à larga desde os anos 1980.
O industrialismo teve entre seus defensores Friedrich List, Henry Ford, J. M. Keynes, Franklin Roosevelt, Raul Prebisch, Celso Furtado, entre vários outros, que nem de longe podem ser acusados de simpáticos ao fascismo. O pior debatedor é aquele que torce informações a seu favor à falta de argumentos consistentes.
Contudo, a cereja do bolo da coluna de Fernando Haddad está no seguinte trecho: “A maxidesvalorização cambial de 1999 deu, por uma década, novo alento à indústria, mas a crise internacional de 2008 e as crises domésticas, econômica e política (2015-16), empurraram-na ladeira abaixo”.
O ex-prefeito de São Paulo, com a sutileza de um paralelepípedo, desconsidera toda a política fiscal expansiva, o aumento do crédito e a política de conteúdo nacional do segundo governo Lula e debita o crescimento do período a um feito – involuntário – do governo FHC! Não é à toa que termina seu arrazoado com uma citação do ex-príncipe dos sociólogos para referendar suas palavras.
Muita gente aponta proximidades entre FH e FHC. Esta é a primeira vez que o ex-ministro da Educação, de moto próprio, demonstra não ser infundada tal percepção. Ambos diluem em seus escritos o que foi aqui mencionado no início, o papel do Estado no desenvolvimento. Não é lapso. É a base do pensamento neoliberal.