Leia o artigo do escritor Fábio Mandingo sobre o livro #Paremdenosmatar!

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*Por Fábio Mandingo Se nossas dores devem ser inventariadas, que sejam pela pena lúcida e elegante de Cidinha da Silva. Ponto. No entanto, não vá despreparado ao encontro do mais recente livro da escritora mineira que, em outra brilhante coletânea de crônicas, apresenta desnuda a face mais doentia do Brasil: o racismo profundo. Um racismo tão enorme, que é capaz de abranger no prisma das suas perversidades, a homofobia, o machismo, o extermínio da juventude, o encarceramento em massa, o silenciamento, a estereotipia, o apagamento artístico, o linchamento virtual e físico, entre outras violências que no Brasil, têm o corpo preto como alvo principal. É um livro que impacta no estômago, que congela a respiração, no qual comungamos dores indizíveis de pessoas reais, de carne e osso e espírito. A destreza estilística de Cidinha é exata como um bom jogo. Angoleira que é. Essa destreza que faz de sua escrita um verbo concreto, de sua lucidez um passo para a loucura. A escritora Toni Morrison pondera, em seu livro Amor: “Às vezes o corte é tão fundo, que nenhuma história de sofrimento pode dar conta.” Não seria esse então o caso, quando Cidinha questiona a comoção midiática seletiva internacional, que a um tempo mobiliza as lágrimas e redes sociais do mundo devido a um atentado terrorista na França, enquanto ignora solenemente os massivos assassinatos e seqüestros de jovens meninas nigerianas pelo grupo terrorista Boko Haram? Não é a própria autora que, após se-nos indignar com a celebração festiva das chacinas do Cabula e do Morro da Lagartixa, grita no título da sua crônica “ Me deixa em paz! Eu não agüento mais!!” ? Qual então o sentido de estilizar tanta dor, quando a mesma escriba inicia uma outra crônica a respeito do assassinato do menino Herinaldo por um policial militar, afirmando que “ não tem forças para lamentar a morte de mais um menino da favela”, mais um entre os “incontáveis invisíveis” que diariamente são massacrados pela máquina de moer gente preta, conhecida como Brasil? Não. Não é o caso. “...recontar não deixa esquecer e fazê-lo sem sensacionalismo evoca a desmesurada falta de valor marcada a ferro na existência de alguns seres humanos. Lembra que eles foram humanos, um dia. Não permite que sejam soterrados na vala comum dos negros para os quais se naturaliza a morte trágica.” Se nossas dores devem ser inventariadas, que sejam pela pena lúcida e elegante de Cidinha da Silva. Ponto. cid2Não é demais afirmar que Cidinha decifra a AméFrica proposta pela campeã preta Lélia Gonzalez. “a decantada unidade latino-americana pouco ou nada inclui os negros, seja nas obras dos grandes pensadores de América Latina, seja na atuação de ativistas políticos que mostram-se sensíveis ao genocídio indígena nas Américas, mas são blindados quanto ao genocídio negro, de ontem e de hoje.” Genocídio que nos arrasta no asfalto com Cláudia. Que nos esmaga a cara sob os coturnos da marinha do Brasil com Rosemeire e Edinei. E a conseqüente mudez, depressão, paranóia, rancor, brutalidade, se torna nossa parte integrante. Porque sobrevivemos. Sobrevivi e não vou me matar. Diz Cidinha da Silva. Sua escrita que honra nossas dores, então, não nos percebe passivos. Aponta sobrevivências, como a dos que trabalham no chão dos carnavais de Salvador e Rio de Janeiro. Celebra a inteligência que desafia a sutileza da segregação moderna, quando dialoga com a sagacidade de um Chris Rock na apresentação do Oscar, obrigando uma platéia racista a rir da própria estupidez. Vislumbra nossas vitórias, quando festeja o desafio dos garis ao descaso do Estado do Rio de Janeiro, ou uma nova dramaturgia preta que desponta em cidades diversas, uma nova música que desafia padrões raciais e sexuais, um novo futebolista que desafia o ‘lugar do negro’ tão caro à casa-grande do futebol brasileiro. Não nos percebe feios, pelo contrário. Cidinha se faz ritmista numa ode a Lupyta: “Lupita sambará miudinho Na cara da sociedade racista Mais do que uma bela passista Terá a elegância e a altivez de uma porta-bandeira Será feita de água tão límpida essa guria Que transcendente e generosa Oferecerá mel Aos que quiserem adoçar o mundo A capa do mundo é nossa Com a Lupita Não há quem possa!” E na lucidez que em tantos momentos apavora, busca a vida na poesia, fazendo ela mesma uma poesia em prosa: “Voltei à poesia para continuar viva. Durante a leitura, o previsto aconteceu. A poesia de Lívia Natália sangrou fertilidade e me arrebatou. Arrebentou, também. E fiquei mais lenta. Atenta para reter o pó de ouro abrigado entre um verso e outro. Para não desmanchar a tipografia quando a água tomasse conta de tudo.” Não se sai ileso das dores contidas em #Parem de Nos Matar. Porque são sofrimentos de carne e osso, com nome , sobrenome e endereço. De amigos, de vizinhos, de familiares que de alguma maneira foram linchados pelo Estado Brasileiro. Serão saudades eternas, serão dores constantes, serão vazios permanentes. E outra vez com as palavras de Lélia Gonzales, buscamos sentido pra essa humanidade que não se rende, para que entre tantas dores nossa poesia não se torne insignificante: “...não se pode deixar de levar em conta a heróica resistência e a criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquanto descendentes de africanos, a herança africana sempre foi a grande fonte revificadora de nossas forças. Por isso tudo, enquanto amefricanos, temos nossas contribuições específicas ao mundo panafricano.” É esse o sentido que se depreende, quando em muitos espaços e textos, Cidinha é apresentada como “nossa escritora”, ou “nossa cronista”. Se nossas dores devem ser inventariadas, que sejam pela pena lúcida e elegante de Cidinha da Silva. Ponto. *Fábio Mandingo é escritor. Autor de Salvador negro rancor, entre outros.