"1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura"

Há pessoas saudosas da ditadura que não vivenciaram, e até esperam comemorar o cinquentenário de 1968 trazendo de volta os militares ao poder. Por isso, é bom lembrar como foi.

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Há pessoas saudosas da ditadura que não vivenciaram, e até esperam comemorar o cinquentenário de 1968 trazendo de volta os militares ao poder. Por isso, é bom lembrar como foi. Por Mouzar Benedito* Em todos os anos terminados em 8, desde 1978, eu me sinto um dinossauro. Motivo: em 1968, eu estudava Geografia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, considerada por muita gente o principal foco de contestação à ditadura, na época. E morava no Crusp (Conjunto Residencial da USP), considerado o segundo maior foco de contestação à ditadura. Então, vivi 1968. Em 1978, o tema “1968”, tomou conta do interesse de muitos jovens estudantes, e já nessa época alguns professores mais novos, que cursaram a faculdade na década de 1970, não tinham muita informação sobre o que aconteceu naquele ano. Alunos deles perguntavam, questionavam, e alguns recorreram a mim para ir conversar com estudantes do segundo grau e mesmo de faculdades. Aí vieram 1988, 1998... Continuavam os jovens querendo saber mais sobre 1968, e alguns professores recorrendo a quem viveu aquele ano. Acho uma postura honesta dos professores: não estudaram aquilo, mas não se omitiram. Jornalistas jovens que faziam matéria sobre 1968 também nos procuravam. Em 2008, Renato Rovai, editor da revista Fórum, propôs que eu fizesse um livro sobre 1968, pensava num ensaio sociológico. Topei fazer, mas não um ensaio. Primeiro, porque sociólogos que estudavam o tema fariam isso bem melhor do que eu. Segundo porque eu achava que ficaria um tanto chato de ler. Ele acabou topando editar um livro com uma visão muito pessoal minha sobre a ditadura, não restringindo a um ano, mas desde o começo dela até o final. Seria um livro de crônicas, algumas delas publicadas na própria revista Fórum, com humor, relatando minhas próprias experiências e minha visão sobre aquilo tudo. E ele foi publicado. Isso foi há dez anos! Podem estranhar minha proposta: escrever sobre a ditadura, com humor? Bom, na contracapa do livro publiquei um texto explicando isso. E publico aqui também: “Um dia, numa palestra de Ariano Suassuna, eu o vi e ouvi louvar a capacidade do brasileiro de gozar os ditadores e a ditadura. Foi assim no Estado Novo, foi assim de 1964 a 85. Sem menosprezar os sofrimentos das vítimas, a indignidade dos ditadores e seus sequazes, o heroísmo da resistência, é preciso ter humor. Ser contra a ditadura e manter a alegria, fazer piadas sobre ela, era uma coisa que incomodava ‘os homens’. Ao achar no meio de um livro esta foto perdida há muito tempo, me vi nela com uma cara de enorme felicidade, apesar de estar desempregado e na lista negra dos patrões, por conta da militância na imprensa alternativa. Ela não é o que parece. O ano era 1978, já não havia guerrilha no Brasil. A espingarda é de chumbinho e a pose é só uma pose mesmo. Estava difícil sobreviver, mas não me entreguei. Por tudo isso, apesar do narcisismo (com essa beleza toda?) de colocá-la na capa, acho que é merecedora de fazer parte de um livro sobre os chamados ‘anos de chumbo’.” Bom... Agora falta pouco para mais um ano terminado em 8. Sou mais dinossauro ainda. E um ano mais simbólico: passaram-se 50 anos, meio século... Com certeza, vai ter muita lembrança na mídia. E agora com uma diferença: acho que nas tais “mídias sociais” vão ter muitas ofensas aos sobreviventes e até aos que já morreram. Há pessoas saudosas da ditadura que não vivenciaram, e até esperam comemorar o cinquentenário de 1968 trazendo de volta os militares ao poder. Por isso, é bom lembrar como foi. Pelo que sei, ainda restam alguns exemplares de “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura” na editora Publisher, que publicava a revista Fórum e publica este site. Se alguém estiver interessado, que entre em contato com os editores. São textos curtos, sobre os mais variados temas da vida da gente. Tem um pouco de fotos também. Pode ter muita gente pensando: será que 1968 foi aquela coisa toda que falam até hoje? Não vou me espichar sobre isso. Apenas publico em seguida a introdução do meu livro. Introdução: que ano! Com muita justiça, o ano de 1968 virou algo mitológico na história do Brasil e do mundo, seja no plano político ou de costumes. Drogas, sexo, roupas, cabelos, música, crenças, tudo isso e muito mais teve uma reviravolta naquele ano. O crédito de tudo que aconteceu, inclusive aqui, costuma ser dado aos estudantes franceses que abalaram a república comandada por De Gaule no mês de maio daquele ano. Tudo começou com uma greve contra uma reforma universitária, e a coisa foi se radicalizando e virou um protesto generalizado, com batalhas de rua contra a polícia. Mas a coisa não foi bem assim, para nós brasileiros. Para começar, nossos protestos começaram antes, contra o acordo MEC-Usaid (Usaid era um órgão de “ajuda internacional” dos Estados Unidos, e o acordo era para uma interferência nas universidades brasileiras, para privilegiar uma formação universitária mais de acordo com os interesses das empresas estadunidenses), contra o imperialismo e contra a ditadura em que vivíamos. No dia 28 de março, portanto bem antes do famoso “maio de 68” francês, houve um protesto contra o acordo MEC-Usaid no Rio de Janeiro, a repressão foi muito violenta e morreu um estudante, Edson Luís Souto. Aí, os protestos contra a ditadura se radicalizaram e espalharam por todo o país, acompanhando o que já acontecia no Rio, em São Paulo e algumas outras cidades. Então nossa luta era outra. Não vivíamos numa democracia como os estudantes franceses. Aqui tínhamos uma ditadura submissa aos interesses do capitalismo internacional, especialmente dos Estados Unidos, e queríamos o fim tanto da ditadura quanto do imperialismo. Isso explica uma coisa que muita gente não compreende até hoje: a vaia a Caetano Veloso num festival de música da Globo, em agosto de 1968, no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (foto). A música dele tinha como título o lema dos estudantes franceses, “É proibido proibir”, enquanto os estudantes brasileiros se identificavam mais com a música “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, apresentada um pouco antes dele. Caetano fez um discurso que serviu para a posteridade, pois lá na hora (eu estava presente) ninguém ouviu o que ele falava. Mas no estúdio a voz dele falada ao microfone aparecia em primeiro plano, com vaias no fundo. Então esse discurso apareceu em disco, mais tarde. Isso não significa que estivéssemos desligados do que acontecia no mundo. Vibrávamos com a derrota que os vietnamitas impunham aos poderosos Estados Unidos e seus aliados, cultuávamos o mito Che Guevara que se iniciava (ele foi morto menos de três meses antes do início de 1968), usufruíamos a chegada da pílula anticoncepcional que acabou com o mito da virgindade, acompanhávamos os acontecimentos da China, onde ocorria a “Revolução Cultural” com seus muitos excessos, nos informávamos sobre o movimento hippie que ocorria nos Estados Unidos, e que logo chegaria aqui, com o lema “paz e amor”, e muitos de nós (não eu) eram apaixonados pela música dos Beatles. E víamos a chegada ao meio universitário de algo até então caracterizado como de marginais: a maconha. Um tempo depois chegaria o LSD. Mas nem todos os estudantes usavam drogas: eu mesmo não era usuário de nenhum dos dois. Minhas drogas eram cachaça e cerveja. Em 13 de dezembro daquele ano, a ditadura radicalizou, com a edição do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, que, entre muitas outras coisas ruins, permitia à polícia prender sem motivos e, indiretamente, torturar e matar opositores. Para o ex-reitor da USP e então ministro da Justiça, Gama e Silva, ainda era pouco. Ele queria mais, babava por sangue. E o mitológico ano de 1968 terminou com o início de uma nova fase na história do Brasil, de violência, medo, prisões, tortura, morte e exílio. Mas também de muita esperança. PS: Citei no texto a vaia a Caetano Veloso, como exemplo de um tempo de radicalizações. O Tropicalismo, de que ele era um dos líderes, não merecia vaias, acho que devem reconhecer hoje os que o vaiaram. Estávamos do mesmo lado, mas muitos não perceberam. Foi um movimento criativo, alegre, importante com suas músicas lindas, de altíssima qualidade, e que também tinha muito do que dizia Ariano Suassuna: o humor como forma de resistência. E falando em radicalização, nestes tempos pra lá de radicais, antes de comemorar a chegada do cinquentenário de 1968, há uma efeméride fatídica: os 49 anos do AI-5, em 13 de dezembro, detonador, como já disse, do início de um tempo de radicalização da violência... Mas em que procuramos manter o humor também. “Nóis sofre, mas nóis goza”, podia-se resumir. O livro “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura” pode ser adquiido, ao preço de R$ 25,00, no site da Publisher. *Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci) Fotos: Reprodução