Boris Schnaiderman: ainda não li, mas sei que vou gostar

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Boris Schnaiderman, do alto dos seus 98 anos, está lançando uma autobiografia. O título é “Caderno Italiano”, o que soa inicialmente estranho para um autobiografado ucraniano que mora desde criança no Brasil. É que aqui, embora pacifista desde jovem, foi um dos pracinhas mandados pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater na Itália, na II Guerra Mundial. Não tenho ainda o livro, só vi uma matéria na “Folha Ilustrada” sobre ele, mas mesmo sem vê-lo já posso dizer que gostei e recomendo. Quem conhece Boris Schnaiderman, com certeza, assina embaixo. Nascido na Ucrânia, tem no currículo uma coisa inusitada: quando criança, presenciou a filmagem de uma cena de um dos mais celebrados filmes revolucionários, “O Encouraçado Potenkim”, de Sergei Eisenstein, em 1925. Segundo me contaram, não sei se é isso mesmo, a cena que viu foi aquela famosa, de um carrinho de bebê descendo uma escada. Ele veio ainda criança para o Brasil e tornou-se o principal tradutor de livros russos para o português. Muitos dos livros de Tostói, Tchekov, Dostoievski e Gorki que lemos aqui têm a marca do seu trabalho. Ele certamente não se lembra de mim, mas o conheci quando era professor de língua e literatura russa no Departamento de Letras Orientais, da USP, que funcionava no mesmo prédio de Geografia e História. Não estudei nada de russo, mas ele se tornou muito conhecido por nós por causa das muitas prisões que sofreu naquele prédio, durante a ditadura. Qualquer invasão policial no prédio, logo o prendiam simplesmente por ser professor de russo. Mas se os policiais da ditadura soubessem um pouco mais sobre ele, certamente achariam que ele “merecia” mesmo ser preso: era (e é) um grande humanista, o que era uma ofensa para os ditadores e seus agentes. Mais tarde, já em 1975, quando o jornalista Marcos Faerman liderou a fundação do jornal “Versus”, aceitou na equipe fundadora um modesto estudante de jornalismo, já formado em Geografia: eu estava no segundo ano da Cásper Líbero. Nas reuniões que aconteceram para essa fundação, encontrei, entre outros intelectuais que respeito, o professor Boris Schaiderman, o que me deu uma satisfação enorme. Com jornalistas competentes e respeitados e intelectuais desse porte, eu, um bagrinho naquele meio, tive logo a certeza de que estávamos criando um belo jornal. E foi mesmo. Não tive muita convivência com ele, nunca fui seu aluno, mas tenho boas lembranças dele. Conto aqui um episódio que ficou gravado na minha mente e que já contei antes no meu livro “1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura”, publicado pela Publisher Brasil. Depois do Ato Institucional número 5, muitos órgãos estudantis da USP deixaram de funcionar, inclusive na Faculdade de Filosofia. Mas nós, estudantes de Geografia, resolvemos ser inconvenientes para a polícia: mantínhamos o nosso “centrinho” acadêmico funcionando, apesar das frequentes invasões policiais e prisões de pessoas que estavam dentro dele, às vezes ouvindo música, às vezes jogando pingue-pongue ou xadrez. Arrebentavam tudo, mas nos dias seguintes nós limpávamos, colocávamos qualquer coisa pra funcionar ali, como uma vitrolinha, alguns discos e jogos de salão. Uma vez, no primeiro semestre de 1969, o centrinho foi cercado por uns poucos soldados do Exército, comandados pelo Coronel Alvim, que presidia o chamado IPM (Inquérito Policial Militar) do Crusp, procurando “apurar” ações de esquerda de moradores do Conjunto Residencial da USP, identificar e prender “subversivos”. Nesse cerco, tentaram prender todos que estavam ali. Juntamos um monte de estudantes e cutucamos a onça com vara curta: cercamos os soldados e não deixamos que levassem ninguém preso. O coronel ficou uma onça! Em junho, os militares voltaram, dessa vez, com muitos e muitos soldados, apoio da Polícia Marítima com seus longos cassetetes e outras polícias. Centenas de homens armados. Tinham uma lista de estudantes a serem presos: uns trinta de geografia e uns dez de história. Cercaram tudo, encheram os corredores de policiais e militares e foram de sala em sala procurando esse pessoal. Chegaram à sala do Boris e, pela primeira vez, decidiram não prender o professor, mas só algum aluno procurado que estivesse ali. Achavam que algum dos procurados poderia ter se refugiado nela. Procuraram até ser “educados”. Bateram na porta e abriram, uns três ou quatro militares fardados atravessaram a porta com metralhadoras nas mãos e pediram: — Com licença, professor... Só viemos prender estudantes subversivos que podem estar nesta sala... Ele reagiu bravo: — Não dou licença não. Ninguém tem licença pra prender estudante na minha sala. Fora daqui!!! Eles foram embora... Mas levando o Boris preso, só ele. Não havia estudantes procurados naquela sala. Enfim, mais uma vez recomendo, antes mesmo de ler, o livro publicado pela Editora Perspectiva. Boris Schnaiderman é um intelectual que merece esse rótulo. E fico feliz em saber que aos 98 anos de idade continua ativo. Melhor ainda: apreciando uma cachacinha mineira de vez em quando.