As Cruzadas vistas pelos árabes

Escrito en BLOGS el
“Foi num sexta-feira (...) que os franj se apossaram da Cidade Santa, após um sítio de quarenta dias. Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso, seu olhar se esfria como se eles ainda tivessem diante dos olhos aqueles guerreiros louros, protegidos de armaduras, que espalham pelas ruas o sabre cortante, desembainhado, degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas. Dois dias depois de cessada a chacina não havia mais um só muçulmano do lado de dentro das cidades. Alguns aproveitaram-se da confusão para fugir, pelas portas que os invasores haviam arrombado. Outros jaziam em poças de sangue (...). Os últimos sobreviventes forçados a cumprir a pior das tarefas: transportar os cadáveres dos seus, amontoando-os, sem sepultura, nos terrenos baldios para depois queimá-los.”   Este é um trecho do livro As Cruzadas vistas pelos árabes, escrito por Amin Maalouf, publicado na França em 1983 e anos depois no Brasil. O exemplar que comprei num sebo é da quarta edição brasileira, de 1994, da Editora Brasiliense. Franj, no caso, eram os cristãos ocidentais, os cruzados, tratados como heróis em seus países de origem, mas considerados pelos rum (bizantinos de rito grego) e pelos muçulmanos um povo bárbaro, inculto e cruel. Um dos exemplos de comportamento “cristão” dos cruzados pode ser o de Ricardo Coração de Leão, inglês, tão glorificado na literatura ocidental. Nas várias Cruzadas, algumas cidades foram tomadas pelos cristãos ocidentais e depois retomadas pelos muçulmanos, tomadas de novo pelos cruzados... Quando Saladino tomou a cidade de Aleppo, que estava nas mãos dos cruzados, permitiu que os derrotados saíssem, levando inclusive suas riquezas. Retomada por Ricardo Coração de Leão, em vez do comportamento humanista de Saladino, nossos bons cristãos promoveram uma matança geral, de homens, mulheres e crianças. E isso se repetiria em Jerusalém, a “Cidade Santa”, e outros lugares.   Desunião muçulmana   Quando eu participava do PT, ficava incomodado com uma coisa: as brigas internas. As discordâncias entre tendências pareciam mais importantes e radicais do que as disputas com os partidos contrários. Aliás, isso é relativamente comum nas esquerdas. Eu comparava isso ao que ocorria (e ocorre) no Oriente Médio: lá as verdadeiras guerras entre muçulmanos parecem mais radicalizadas do que com os inimigos comuns deles. Xiitas e sunitas e mesmo tendências internas dessas duas correntes religiosas muçulmanas viviam (e vivem) numa desunião total. Brigam mais entre eles do que com seus inimigos. Lendo esse livro, vi que a coisa é antiga. Fora a disputa entre xiitas e sunitas, havia a desconfiança mútua até entre parentes poderosos. Por exemplo: quando chegou a primeira Cruzada à Síria, em 1096, havia um rei de Aleppo e outro de Damasco que eram irmãos. Mas se odiavam totalmente. E se destruíam mutuamente, em vez de combater o inimigo invasor. Às vezes, algum líder muçulmano chamava outros líderes, inclusive irmãos, primos e tios que reinavam em certas regiões, para a jihad, a guerra santa contra os invasores “infiéis”, e parecia que haveria uma união contra o inimigo comum, mas logo algum desconfiava que o outro ia ficar com mais poderes, conquistar seu reino, e a coisa desandava. Quando, enfim, algum líder conseguia unir uma região, como aconteceu com Saladino, havia paz interna e prosperidade, além de condições de enfrentamento dos invasores. Mas os líderes um dia morrem... e aí havia sempre uma guerra de sucessão, divisão do reinado e por aí vai. A briga pelo poder enfraquecia todos e abria espaço para a perda de cidades e regiões para o inimigo invasor. Essa, reconhece Amin Maalouf, era uma “enfermidade” dos árabes. Eles não conseguiam criar instituições estáveis. Enquanto os franj conseguiam criar verdadeiros Estados, em que a sucessão dos governantes ocorria geralmente sem choque, nos Estados muçulmanos toda monarquia era ameaçada com a morte do monarca, toda transmissão de poder provocava uma guerra civil.   Comandos suicidas   Uma coisa muito interessante nesse livro é a história de como surgiram os comandos suicidas, no estilo desses homens-bombas que agem feito doidos nos dias de hoje. Na cidade de Rayy, perto de onde depois seria fundada Teerã, nasceu Hassan as-Sabbah, por volta do ano 1048. Segundo a lenda, era um sujeito culto, e companheiro inseparável do poeta, matemático e astrônomo Omar Kahyyam. Hassan era da doutrina dominante na Ásia muçulmana daquele tempo, o xiismo. Mas na juventude dele, os sunitas tomaram o poder e os xiitas passaram a ser apenas tolerados. Ele se insurgiu contra essa situação e, em 1071, foi para o Egito, onde encontrou muitos fundamentalistas religiosos que se identificavam com ele. Formaram um grupo com a ideia de conquistar o califado xiita local e vingar-se dos opositores. Nizar, o filho mais velho do califa tornou-se chefe do grupo, mas o ideólogo era Hassan, elaborador de um plano minucioso para tomada do poder. Em 1090, o grupo tomou a fortaleza de Alamur (“ninho da águia”), num lugar praticamente inacessível de montanhas próximas ao mar Cáspio e ali passou a organizar grupos político-religiosos muito eficazes e com um espírito de disciplina inigualado. Hassan se instalou nessa fortaleza e nunca mais saiu dali. Por isso ficou conhecido como “o homem da montanha”. Os adeptos, segundo conta Amin Maalouf, eram classificados segundo seu nível de instrução, confiabilidade e coragem. Faziam cursos intensivos de doutrina e treinamento físico. O método escolhido para implantar o medo nos inimigos era o assassinato, e a arma preferida, o punhal. Militantes eram mandados, individualmente ou em pequenos grupos, para matar pessoas escolhidas. Geralmente eles se disfarçavam de comerciantes ou ascetas, estudavam minuciosamente e em segredo a vida das suas vítimas, mas o assassinato tinha que ser diante do maior número de pessoas possível, por isso era quase sempre ao meio-dia de sexta-feira, quando as mesquitas estavam cheias. Matavam o sujeito na frente de todo mundo. Isso era para que o castigo do infiel ficasse bem visível, assim como o sacrifício de quem o cometeu, porque sendo diante de grande público, geralmente ele era pego e morto. Os executantes eram chamados de fedai, quer dizer, “comando suicida”. Por causa da serenidade com que essas pessoas topavam fazer essas ações, deixando-se massacrar em seguida, acreditava-se que eles eram drogados com haxixe, então eram chamados de haschichischiyun ou haschaschin, palavra que virou “assassino” em muitas línguas ocidentais. O primeiro assassinato da seita denominada Assassinos foi em 1092, e a vítima foi o vizir Nizam el-Mulk, que durante trinta anos organizou um império sunita. Médicos, ourives, gente de todos os calibres da seita dos Assassinos se infiltravam na cúpula do poder para cometer seus crimes. Hassan as-Sabbah morreu em seu reduto em Alamur, em 1124, mas sua morte não diminuiu a gana dos Assassinos. Ao contrário, recrudesceram ainda mais, ganhando a antipatia geral dos muçulmanos, fossem eles sunitas ou xiitas. Em muitos momentos houve verdadeiras caçadas a eles em algumas cidades, mas a fortaleza nas montanhas continuavam firmes, e dali partiam ordens para mais e mais assassinatos. Somente em 1257, os mongóis de Gengis Khan (já morto), comandados pelo seu neto Hugala, conseguiram tomar a região. Mas não conseguiram acabar com a seita dos Assassinos. Há quem acredite que essa seita exista até hoje. Pode ser que não, mas devem ter inspirado grupos e seitas atuais, que têm o mesmo fanatismo e o mesmo estilo, adaptado aos novos tempos. Os comandos suicidas continuam atuantes e temidos. Há uma diferença entre os de hoje e os daquele tempo: na época, os assassinatos eram bem seletivos, tinham como alvo figuras importantes, como generais e reis, e procurava-se não atingir a população comum, enquanto os atentados de hoje, com bombas, armas de fogo ou seja o que for, fazem um monte de vítimas que nada têm a ver com a história. O que me espanta é que o criador desse estilo de ação foi um homem culto, devotado à ciência, amigo inseparável do grande sábio Omar Khayyan!