Dinheiro, muié e bicho-de-pé

Em Nova Resende, quando eu era criança, quem estava à toa, sem trabalho, vagabundeando (ainda que sem querer, pois podia ser o caso de gente que queria trabalhar, mas não tinha emprego), dizia que estava “trabalhando pro Zé Rezende”.

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Em Nova Resende, quando eu era criança, quem estava à toa, sem trabalho, vagabundeando (ainda que sem querer, pois podia ser o caso de gente que queria trabalhar, mas não tinha emprego), dizia que estava “trabalhando pro Zé Rezende”. Por Mouzar Benedito* “É professora, coitada”. Ouvi alguém falando isso de uma mulher que, segundo o fofoqueiro, estava com o aluguel atrasado porque a grana estava curta demais. Ganhava pouco. E essa “coitada” que ganha pouco está em vias de se tornar mais “coitada” ainda: terá que trabalhar até os 65 anos para se aposentar, e perdendo parte do salário porque para a aposentadoria integral segundo quer Michel Temer (que se aposentou novinho e ganhando umas dez vezes mais que uma professora) ela teria que ter 46 anos de trabalho. Conversamos então sobre o tempo em que uma das melhores profissões que existiam, principalmente no interior, era a de “marido de professora”. Muitos dessa “profissão” podiam vagabundear o tempo todo, porque era mantido pela mulher, que tinha um salário relativamente alto, ou pelo menos suficiente para sustentar bem uma família. Alguns homens tinham outra “profissão” que não exigia trabalho, a de genro. Casavam-se com filhas de rico e se encostavam no sogro, fazendo alguns servicinhos para ele. Mas muitos desses eram humilhados pelo sogro. Podia até ser uma “profissão” mais rendosa, mas era humilhante. Homem que não trabalhava por ser marido de professora era visto até com simpatia, como alguém que, simplesmente, não gostava de trabalhar e levava a vida numa boa. Mas genro que vivia à custa do sogro era visto como um capacho, um sujeito servil. Em Nova Resende, quando eu era criança, quem estava à toa, sem trabalho, vagabundeando (ainda que sem querer, pois podia ser o caso de gente que queria trabalhar, mas não tinha emprego), dizia que estava “trabalhando pro Zé Rezende”. Motivo: o Zé Rezende era um aposentado que passava quase o dia todo andando vagarosamente com a mulher, na quadra em que morava. Coisa dos tempos em que não havia televisão, né? O sujeito aposentado, se não fosse do tipo que gosta de ler ou que procura “o que fazer”, não tinha muitas opções para se distrair, simplesmente ficava à toa. Ganha pouco Falando em professora que ganha pouco, lembrei-me de um motorista que trabalhava na sede do Senai, na avenida Paulista, num tempo em que não havia tíquete refeição ou algo equivalente. Para ser mais exato, comecei a trabalhar lá em 1979. O próprio Senai, assim como outras instituições e empresas, fornecia comida aos seus empregados, descontando no salário. Tinha dois refeitórios: um para a diretoria, todo sofisticado, e um para o resto dos funcionários. A comida não era ruim. Mas era pouca, principalmente a chamada mistura. As pessoas não se serviam, entravam numa fila com a bandeja e as cozinheiras serviam, regulando. Quando havia bife, era um pequeno por pessoa. Feijão e arroz, serviam um pouco mais para quem pedisse, mas com cara de quem fazia um favor. O tal motorista que citei não comia o bife dele na hora. Pegava um pãozinho (também era um só por pessoa), abria, colocava o bife no meio, embrulhava e guardava. Almoçava só o arroz com feijão (às vezes era macarrão) e uma saladinha também controlada. Levava o sanduíche para jantar e, sem que ninguém lhe perguntasse ele se justificava: “Eu ganho pouco”. E pegou o apelido de “Ganha Pouco”. Até os diretores o chamavam assim. Vivendo à toa Volto aos que não trabalham, os que “trabalham pro Zé Rezende”. Em outros lugares por aí ouvi muitos sinônimos de vagabundear. Alguns eles, que me lembro agora: coçar o saco, coçar os colhões, enfiar peido em cordão, azeitar o eixo do sol, estar procurando um barranco pra se encostar, estar encangando grilo, e estar procurando quem inventou o trabalho. Para esse último, que quer saber quem inventou o trabalho, há uma resposta óbvia: a “Dona Necessidade”. E volto a Nova Resende também, com a história de dois amigos que varavam a noite em atividades etílicas. Um deles, o Luiz, dizia: “Acordei com o tilintar dos talheres”, quer dizer, dormia até a hora do almoço. O outro, Mário, ia até mais tarde. O pai dele, certa vez, querendo que ele fizesse alguma atividade que pudesse ser chamada de trabalho, lhe propôs que administrassem juntos os cafezais dele. “Eu levo os camaradas de caminhonete de manhã, para a roça, e você vai buscar às cinco da tarde, quando eles param de trabalhar”. O Mário topou, mas muitas vezes não acordava a tempo de ir buscar os trabalhadores. Bicho-de-pé O famoso bicho-de-pé bota ovos nos pés da gente, geralmente num dedo ou no meio de dois deles, e esses ovos vão crescendo dentro de uma espécie de bolha pequenininha. Dá uma coceira danada. Mas tem quem goste. Aí entra o tipo que também está vagabundando. Muitos roceiros gostavam de ficar à toa, sentado numa cadeira de balanço ou num banco de madeira, se deliciando com aquela coceirinha, coçando o pé delicadamente. Quando os ovos viravam uma “batata”, quer dizer, quando estava perto do momento de eclodirem dentro da tal bolha, soltando um montão de bichinhos que podiam infeccionar tudo, só aí, resolviam tirar os danados. Desinfetavam uma agulha e procuravam tirar a batata inteira, sem perfurá-la, para que os ovinhos não se esparramassem. Passado um tempinho, passavam a andar descalço pelo chiqueiro para pegar outro bicho-de-pé. Existia até um ditado gozador sobre as três coisas que o caipira mais gosta: “Dinheiro, muié e bicho-de-pé”. Mas eles explicavam: “De que adianta dinheiro e muié, se o ‘bicho’ num ficá de pé?” *Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci) Foto: Divulgação