Lembrando de um trambiqueiro

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–Malandro, trambiqueiro, tem que ser simpático mesmo... Uma mulher dava bronca numa moça que foi enganada em não sei quê por um sujeito e dizia que o cara era muito simpático, não imaginava que ele fosse um enganador. Lembrei-me, então, de um trambiqueiro que conheci, o Aparecido, meu colega de trabalho numa época que tive que ir para o interior. Morava, segundo ele mesmo, na “casa mais bonita da cidade”. Casa própria, por sinal, só que ele nunca havia pago nenhuma prestação. Cada vez que a Caixa Econômica ameaçava lhe tomar a casa de volta, ele recorria a alguns amigos, altos políticos da Arena, o partido do governo ditatorial, e eles impunham à Caixa uma renegociação da dívida, e ele não pagava de novo, até nova renegociação. Um dia, um amigo e colega de trabalho anunciou seu casamento, e o Aparecido se ofereceu para fazer uma lista para arrecadar dinheiro para a lua de mel dele, em vez de cada amigo dar um presentinho. Arrecadou uma baita grana, porque o amigo era muito popular. Então, levou solenemente para ele não o dinheiro arrecadado, mas um cheque único dele mesmo, Aparecido, com a soma dos valores da lista e já incluindo a sua parte do presente também. Só que o cheque era sem fundos. O noivo depositou o cheque, e pagou muitas coisas na viagem com cheques... E todos os cheques voltaram por falta de fundos! Passados uns meses, o Aparecido começou a me falar de uma amiga dele, funcionária da prefeitura, que queria me conhecer. Fiquei desconfiado. Afinal, sou mineiro. Um dia, trouxe a moça até um restaurante em que iríamos jantar tomando vinho e me apresentou. Era bonita, e ele praticamente jogava a moça pra cima de mim. Como mineiro, de novo, lembrei-me do ditado “Esmola demais, o santo desconfia”, e tirei o corpo fora. Pouco tempo depois, fiquei sabendo que a moça estava grávida dele, e quando ele a levou para me conhecer, estava no início da gravidez. Imaginou que se eu tivesse um caso com ela, poderia me “culpar” pela gravidez. Mais tarde, conversando sobre o que já tínhamos feito antes, contei que estudei Geografia e que tinha feito estágio no Instituto Geográfico e Geológico de São Paulo (IGG). E ele me disse que trabalhou nesse instituto durante anos. Por coincidência, na semana seguinte estava em São Paulo, fui comprar um mapa no IGG e aproveitei para visitar meus colegas de trabalho, do meu tempo de estágio. A sala tinha umas dez pessoas, cada uma em suas respectivas mesas de trabalho. Conversava com todos eles e falei: – Estou trabalhando com um cara que já trabalhou aqui. – Quem? – perguntaram. – Ele se chama Aparecido. Fez-se um silêncio total. Um dos amigos me puxou pelo braço e me chamou pra tomar um cafezinho. No café, me falou: – Não fale esse nome aqui que pega mal. Contou, então, que a mulher de um dos colegas de trabalho teve um problema grave de saúde, numa época em que quase ninguém tinha plano de saúde, e ele não conseguia tratar a mulher na rede pública, que era bem pior do que hoje. Fora o Hospital das Clínicas, que era excelente, não havia praticamente mais nada. O sujeito precisou levantar todo o dinheiro possível, pegar empréstimos, pois não tinha propriedades, e entre as coisas que resolveu vender havia uma Enciclopédia Barsa, ainda na caixa, que acabara de receber. Pagou 1,5 mil cruzeiros nela poucos dias antes de a mulher ter o diagnóstico da doença. E venderia por 500. O Aparecido, simpático, o proibiu de fazer isso. – Faz uma rifa – disse. – Com cem bilhetes a 20 cruzeiros, você arrecada 2 mil. Mas o sujeito era tímido, tinha vergonha de sair vendendo rifa pros colegas. O Aparecido se prontificou: – Traz a enciclopédia pra eu mostrar pra todo mundo, que eu vendo. Vendeu mesmo. Falava da dificuldade do amigo e da qualidade da enciclopédia, e arrecadou 2 mil cruzeiros. Só que o dinheiro não foi para o amigo com a mulher doente. E o ganhador da rifa também não recebeu a enciclopédia. Esta crônica é parte integrante da edição 113 de Fórum