Pragas e mais pragas

Leia no Blog do Mouzar: "Retratos dos tempos atuais, de um pessoal que não gosta de ler, não gosta da ciência, não gosta de sons que agradam aos ouvidos, do culto ao não-saber"

Jair Bolsonaro (Montagem)
Escrito en OPINIÃO el

Aviso logo que vou dar a cara a tapa. Quem ler, pode ir já sabendo que é uma provocação.

 “Na primeira noite de Pêssach, no exato instante em que deu meia-noite, Deus desceu sobre o Egito com 900 mil anjos destruidores e matou todos os primogênitos egípcios, tanto homens como mulheres”. Não foram poupados nem mesmo filhos de escravos egípcios não hebreus. Até animais tiveram seus filhos mais velhos assassinados.

Isso está na Bíblia, livro que é a base da fé judaica e cristã.

Cito como uma forma que podem chamar de provocação, depois que o cronista Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, publicou um texto intitulado “Porque torço para que Bolsonaro morra”, no dia 7 deste mês, depois da notícia de que o presidente contraiu a Covid-19. Segundo ele, no “consequencialismo”, “o sacrifício de um indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior”. Ainda segundo Schwartsman, estudos sobre como a postura do presidente aumenta os óbitos na pandemia e sua morte salvaria vidas, tornam o seu desejo defensável.

Não sei. Ando tão descrente de um monte de gente que duvido que se Bolsonaro morresse da doença seus seguidores seriam chamados à razão. Acho até que é mais provável que atribuam a alguma conspiração comunista a morte do líder deles e o cultuem como santo. Epa! Santo, não. Poderia ser chutado por evangélicos. Um profeta, talvez...

Houve manifestações indignadas contra o articulista.

Mas, concordando ou não com Hélio Schwartsman, lembro a Bíblia, o episódio citado, para fazer o faraó permitir a saída dos hebreus (judeus) do Egito. Depois de nove pragas devastadoras, Deus usou essa, matando não um indivíduo que era o grande responsável pelo impedimento da saída de um povo rumo à liberdade. Que culpa tinham os filhos mais velhos de todos os egípcios? Criancinhas de berço, inclusive. E os filhos de escravos não hebreus? Morreram também, para o bem do povo hebreu. E filhotes de animais?

Então, acho uma hipocrisia que judeus e cristãos se horrorizem ante um “desejo” de alguém para que uma pessoa simbólica morra para que, acredita, ele, milhares de vidas sejam salvas.

Concordando ou não com esse desejo, repito, pergunto aos judeus e cristãos que se horrorizaram com ele, se Deus é mau. Podem dizer que não é mau, é justo. Mas houve justiça no caso dos primogênitos egípcios?

Falando em pragas, não sei porquê, me lembrei da música que toca nos rádios e na TV atualmente. E que vende.

Há alguns anos, publiquei aqui mesmo, no blog da Fórum, um texto falando que não gosto da música rotulada como “sertanejo universitário” e fui muito xingado por leitores. Na época, publicavam comentários embaixo dos textos. E me chamaram, no mínimo, de elitista, por não gostar desse gênero que chamam musical. O bolsonarismo explícito ainda não existia, mas estava já pairando por aí. O ovo da serpente estava chocando. Não se pode não gostar de algo que eles gostam. Se você faz isso, é um canalha que merece a morte na tortura. Se eles não gostam de bolero, por exemplo, acham que quem gosta é um bandido comunista que devia morrer. “Se te encontrar na rua, te mato”. É por aí.

E combina bem com os ídolos deles. Se existe, eu ainda não vi um cantor sertanejo universitário que não seja bolsonarista. Não estou dizendo que não existe. Só que não conheço.

A música e seu tempo

Acredito (e acho que não sou só eu) que a música reflete em grande parte o momento político em que nasceu e/ou faz sucesso. E cito alguns exemplos:

- Durante o Estado Novo getulista, uma ditadura cruel, mas que tinha projetos educacionais grandiosos (o ministro era o cultíssimo Gustavo Capanema, que tinha entre seus auxiliares gente como Carlos Drummond de Andrade), incluindo a música (o canto orfeão comandado por Villa Lobos), o regime procurava criar um ambiente propício ao progresso econômico, e que música fazia sucesso na época? O samba, especialmente o samba-exaltação, que tinha em Ary Barroso um expoente. Basta lembrar a “Aquarela do Brasil”.

- Durante o governo Juscelino, um ambiente meio paz e amor, de amenidades, progresso em algumas áreas, um clima de água com açúcar, surgiu a bossa nova.

- Durante a ditadura iniciada em 1964, tempo de repressão e violência, teve a música de protesto de Chico Buarque, Vandré, Sérgio Ricardo e muitos outros, até eclodir, já em 1968, o Tropicalismo, gozador, que em vez de atacar diretamente a ditadura a gozava, com altíssima qualidade de música e letra.

- Quando a ditadura balançava, um símbolo do momento eram os shows no Lira Paulistana, teatro localizado num porão da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, onde tiveram voz grupos como o Premê e o Língua de Trapo, unindo gozação e alta qualidade musical. E outros maneiros, como o Rumo e o Paranga, este com uma música festiva e ingênua. No rock, vieram grupos como os Titãs, Joelho de Porco, Ratos do Porão e Ira! E também surgiram cantores como Tetê Espíndola, Itamar Assumpção, Ná Ozetti, Laura Finochiaro, Eliete Negreiros e Cida Moreira.

Depois começou uma fase confusa, tempos de Sarney até FHC. Foi quando surgiu o axé, se desenvolveu o pagode, que era legal com Zeca Pagodinho, mas foi virando uma coisa melosa. Nesse período, lembro-me que os discos que comprei eram quase todos de compositores que se revelaram nos anos 1960, como Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Mas teve novidades, como a excelente Marisa Monte.

O sertanejo, uma música que deixou de ser caipira, pegou dela, no início, o canto em duas vozes, já tinha adeptos nesses anos, Chitãozinho e Xororó fizeram sucesso já na segunda metade dos anos 1980. E foram vindo duplas e compositores especializados nela. Eu que gosto de música caipira, não gostava desse gênero, mas não me incomodava tanto. Enquanto isso foi gestando o ovo da serpente, que explodiu no século XXI. Será que Lula e Dilma têm culpa nisso? Bom... Não sei, mas é um gênero que combina com bolsominions. Um barulho incômodo para meus ouvidos. E com letras que representam bem o modelo atual.

Ah, claro... Teve nesse período, e tem até hoje, músicas que “evoluíram” do funk cantado por Tim Maia e Sandra de Sá para o funk dos bailes de subúrbio do Rio de Janeiro. Tem sua sonoridade e seus motivos. E o rap, fruto de movimentos negros, com letras justificadamente agressivas. Surgiu nos Estados Unidos e chegou aqui nos anos 1980, como parte do Hip Hop, criado por comunidades oprimidas em Nova York que reagiram.

E não dá para esquecer a chegada do forró no Sudeste. Músicas já existentes receberam reforços de novos compositores, e dançava-se por todo lado.

Não dá para ficar lembrando de tudo, mas continuo gostando do que gostava antes. Saudade do frevo, do choro, do samba, da moda de viola e, por que não?, do bolero, da rumba, do tango... Rock brasileiro? Raul Seixas e Rita Lee, além dos já citados.

Eu sei é que quando ligo o rádio hoje em dia, afora umas poucas emissoras que fazem jornalismo, tem pastor evangélico gritando e pedindo dinheiro ou músicas desse tal de sertanejo universitário.

Pra mim, são retratos dos tempos atuais, de um pessoal que não gosta de ler, não gosta da ciência, não gosta de sons que agradam aos ouvidos, do culto ao não-saber... De crença na terra plana e na ideia de que quem lê, acredita na ciência, gosta de música agradável aos ouvidos e pensa é um canalha que merece ser apedrejado como pecador e queimado nas fogueiras na Santa Inquisição bolsonariana.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

Temas