Que fim vai ter a crise atual?

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O texto a seguir, embora possa não parecer a princípio, tem a ver com o momento político em que vivemos no Brasil. No final, faço umas considerações sobre isso. Quem tiver paciência (e tempo), por favor, leia e pense. Uma coisa já antecipo: o comportamento de muitos brasileiros em 2016 está ficando parecido com os de gente de um povoado perdido nas serras mineiras, longe de tudo, no longínquo 1930. Coisa besta! Acabou em tiroteio! Em 1930, 16 anos e meio antes de eu nascer, inaugurou-se a luz de rua em Nova Resende. Na época, a cidade tinha duas facções políticas, ambas do Partido Republicano Mineiro (PRM), mas inimigas radicais. A cidade era dividida: numa parte só moravam “aranhas” (nome de uma das facções) e do outro só “caranguejos”. No meio, a Praça Santa Rita, onde se misturavam com muito atrito. Para quem estranha esses nomes aranha e caranguejo, é bom saber que era comum na região dar nomes de aves, insetos e outros animais a facções partidárias. Em Muzambinho, por exemplo, eram “periquitos” e “papagaios”. Essas facções nova-resendenses sobreviveram durante muito tempo, quando já não existia mais o PRM. Nos partidos criados em 1946, que duraram até 1965, os antigos caranguejos se abrigaram na UDN (União Democrática Nacional), e os aranhas no PSD (Partido Social Democrático). Com quase a mesma rivalidade. Depois, durante a ditadura militar, viraram Arena 1 e Arena 2. Os aranhas governaram a cidade quase o tempo todo, e os caranguejos sempre fizeram uma oposição cerrada. Para a inauguração da luz, os aranhas trouxeram uma banda do distrito de Alpinópolis, também conhecido como Ventania, hoje uma cidade maior que Nova Resende. A banda seguiria tocando pelas ruas da cidade. Mas os caranguejos consideraram uma ofensa a banda ligada aos aranhas tocando “abusivamente” à frente das suas casas. E ocorreu um tiroteio que ficou famoso. É interessante ver a versão das duas facções sobre o episódio. E eu tive a sorte de conseguir juntar isso. A versão dos aranhas José Aprígio de Rezende foi presidente da Câmara Municipal de Nova Resende durante muito tempo, e continuava sendo um dos líderes dos aranhas na época da inauguração da luz. Muito organizado, ele guardava todos papéis e documentos da época. Quando eu tinha uns 13 ou 14 anos de idade e era aprendiz de barbeiro, ele foi uma das minhas cobaias. Já tinha uns setenta anos. Ganhei de José Armando, filho dele, um livrinho onde ele anotava, entre outras coisas, cópias das cartas que enviava aos amigos. Uma dessas cartas fala justamente desse episódio. E aí vai ela, transcrita literalmente, mantendo a ortografia e a pontuação do autor, lembrando que depois dela vieram várias reformas ortográficas: Nova Resende, 24 de maio de 1930. Presado amo José Miguel Patos Saudações affectuosas e votos de bôa saude e felicidades extensivos a sua Exa família. Communico-lhe que realizou-se no dia 17 do corrente, as seis horas da tarde, a inauguração da luz electrica nesta cidade. Apezar de ser um optimo melhoramento, para este logar, deixou uma recordação tão triste e horroroza que jamais poderemos esquecel-a. Estavamos na casa do Quincas Netto quando vimos, descer tocando pela rua Cel. Jayme Gomes, uma Banda de Musica; pela afinação dos instrumentos, ficamos convencidos que não era a Banda “Mariano” e qual não foi a nossa admiração quando conhecemos, o Totonho Lemos (Presidente da Camara), acompanhado da corporação musical de Alpinopolis; Os nossos companheiros mostraram-se satisfeito com a surpreza inesperada que os dignos amigos de Alpinopolis nos fizeram. Reinava a maior tranquilidade possivel, aonde nos achavamos, quando ouvimos de um menino as seguintes palavras: Os “Carangueijos” disseram que a Banda de Alpinopolis, na rua Jayme Gomes não passa. Scientes de tal noticia, diversas pessoas, procuraram saber a verdade e não foi possivel; julgando que foi boato falso, rezolveram prosseguir os festejos. Sahimos da casa do Quincas Netto e fomos em direção à rua Jayme Gomes (onde ficou a “cabine” e devia realizar-se os festejos) e qual não foi a nossa surpreza quando deparamos com os indivíduos: João Gaspar Sobrinho, Alcides Castro, Francisco Januario (o careca), Angelino Gaspar, João Ribeiro e outros bandidos de revolveres em punho; o primeiro mencionado [João Gaspar] disse:- A Banda da Ventania daqui para cima nem um passo, e os demais gritaram:- Fóra o povo de Alpinopolis!... A maior parte dos nossos companheiros correram, mesmo os que ficaram por ultimo desceram, porque seria loucura passar por aquela rua, tendo conhecimento que os “Carangueijos” estavam atucaiados e promptos para nos atacar. Chegou ao cumulo do desespero os taes “Carangueijos”! Desanimados com a retirada de muitos eleitores que nos acompanhava, procuram, por meio de arruaças, amedrontar os nossos correligionarios afim dos mesmos não comparecer às eleições. De volta encontramos, perto da casa do snr. Manoel Preto, o Tonico Araujo, bastante nervoso, dizendo:- Se não tiver homens aqui, para enfrentar estes bandidos, eu vou enfrental-os e quero mostar-lhes que hei de passar naquella rua ou elles me matam. Procuramos embaraçal-o mas foi impossivel, porque, elle achava-se armado com um revolver e sahiu gritando pela rua acima: “Carangueijada” severgonha!... Corja de bandidos!... Venham me embargar a passagem... venham!!! Quando o Tonico subiu gritando, correu gente tão desesperadamente que andou cahindo alguns pela sargeta e outros perdendo chapéos, bengallas e canivetes. O Dr. Arthur perdeu a capa e a bengalla; o Antonio Clementino levou uma queda ao entrar em casa e o Olyntho Mariano perdeu o instrumento que estava tocando. Quando o Tonico subiu, os que estavam na tocaia, fizeram-lhe descarga cerrada; mas, felizmente, levou só um tiro na perna, ferindo-o levemente. A Zota também ficou levemente ferida, com uma balla na perna. Acha-se nesta cidade, tratando do inquerito, o Major Sertorio. Sem mais queira com sua Exma familia, receber recomendações de todos os nossos e um saudoso amplexo deste seu amo Obgdo e (ilegivel) José Aprígio de Resende A versão dos caranguejos No começo de junho de 1977, soube que o senhor Pascoal Gaspar, farmacêutico, então morando em Apucarana, no Paraná, estava de cama, sem chances de sobreviver. Falei com seu neto, Mário, e fomos para lá. Eu queria pegar um depoimento dele — afinal era um dos principais líderes dos caranguejos, chamado às vezes de bandido pelos governistas mas se considerava um “revoltoso” e era citado como provocador de toda a confusão — antes que levasse para o túmulo sua versão desse episódio da inauguração da luz. Nos dias 12 e 13 de junho, falei com ele, na presença dos netos Mário e Maria Arminda. Pascoal estava enfraquecido, sua voz às vezes não era clara e, devido à sua condição, não pedíamos que repetisse as palavras que não entendíamos, pois o esforço que exigíamos dele com a entrevista já era muito. Segue-se a transcrição literal do trecho em que conta como foi. Um detalhe: ele sobreviveu mais de um ano, ainda. Aquilo foi no dia da inauguração da luz. Aquilo não fui eu. Foi o doutor Floro, doutor Flávio e o Toniquinho. O Dácio Rolim era um rapaz revoltoso, fazia parte do partido. O Luciano Magri, o Dácio Rolim, Julinho... Eu estava lá na minha casa, no dia da inauguração. Mais ou menos às onze horas da manhã, meio-dia, então, a banda da Ventania entrou calada, parou na frente da minha casa, bem em frente à minha casa, rufou o tambor, rufou o bumbo por muito tempo, uns cinco minutos – ban, ban-bamban, ban-ban-ban... – pra chamar a atenção mesmo. Saíram todos na porta, na janela. A mulher saiu, minhas filhas, os filhos, todos saíram, pra ver aquilo. Aí começou o dobrado, na porta da minha casa. Doutor (inaudível) passou pela rua de baixo, doutor (inaudível)... os músicos, pela rua de baixo. O dr. Artur Silveira era juiz lá, era muito amigo nosso, viu aquilo. Ele foi passando e viu aquilo. Falou: “Isso aí é um insulto pra você, Pascoal. É um insulto bater o bumbo, o rufo tanto tempo, pra depois começar um dobrado. Isso é um insulto!”. Falei: “Deixa pra lá”. O Julinho chegou, e o Dácio. Chegaram nessa hora. “É um insulto mesmo! Mas pra eles entrarem aqui nesta rua... aqui não passam...”. Falei: “Que bobagem, deixa de besteira. Não podemos fazer nada... O que é que vai fazer?” “Não!”... Quando foi na hora da inauguração eu corri. Tava o povo reunido, tinha um rapaz de Muzambinho também, lá, tomando parte também, junto com o Dácio, o dr. Artur Silveira, tudo lá cercando a banda, pra não deixar a banda entrar naquela rua onde tá a cabine, ali. Eu estava em frente à casa do Clementino, segurando o povo pra voltar. O Julinho, os outros, tinha uma casa ali onde é o armazém do João de Castro... aquele sobrado novo. Peguei, levei o povo pra lá, pra entrar lá dentro, pra se distrair. Chegou o dr. Mário, me pegou pelo peito: “O senhor é o culpado por tudo isso aqui, seu Pascoal”. “Culpado, não. O senhor não está vendo que eu tô tocando o povo pra trás aqui, cercando?! Tava eu com o Toniquinho. Nessa hora, quando eu vi, começou os tiros. O primeiro tiro foi do Tonico Araújo. Veio vindo... O dr. Gentil cercou ele, pra não entrar... com o revólver na mão. A Zota do Mariano, do Zequinha Mariano, foi cercada também. Disparou um tiro na perna da mulher! Aquele tiro que ele disparou... os outros começaram a atirar também. De lá, atiravam pra cá. Bala assobiava! Eu fui, entrei na casa do Clementino, por um portão, assim, ainda arrastei o dr. Mário. Caímos juntos lá, no porão do Clementino. Bala batia na parede assim, na parede do Clementino, os cavacos de areia caíam na minha cabeça e na cabeça dele. Eu falei: “O senhor é o culpado de tudo isso! Se o senhor não vem aqui, não acontecia nada disso”. “Ah, Pascoal, me perdoa.” Aí ficamos amigos, né? Eu tratei dele. Fiz curativo nele. Precisou fazer curativo quase um ano nas bexigas dele, e eu que fazia. Ele era pai do Lucas. Pois é... Não morreu ninguém. Só uma mulher ficou ferida. A banda voltou. Era pra morrer muita gente, foram duzentos tiros de lado a lado e não morreu ninguém. E ninguém ficou ferido... só uma mulher...” E o que tem isso a ver com os dias de hoje? Lembro: aranhas e caranguejos, assim como outras facções de outros municípios, pertenciam ao mesmo partido, o PRM. Enquanto um lado via o outro como antro de bandidos e seus militantes se matavam em brigas municipais, em Belo Horizonte seus líderes estavam juntos, com algumas rusgas mas dentro do mesmo partido, com as mesmas propostas. Mais tarde viraram Arena 1 e Arena 2... Brigavam municipalmente e em Brasília seus líderes se congratulavam. PT e PSDB, não são iguais. Mas que propostas têm para o país? Diferentes, claro, mas duvido que algum líder sério desses dois partidos deseje ver uma nova ditadura ser implantada no Brasil. Ou que o país vá definitivamente para o brejo. Só que as coisas estão ficando iguais a Nova Resende em 1930: sem possibilidade de convivência. Quando se encontram é pra brigar. Nova Resende era assim... em 1930! E nessa situação de intolerância, de ódio, em que os dois lados só têm a perder, um terceiro lado, o de golpistas e saudosos da ditadura, vai ganhando adeptos. Li uma análise de uma socióloga (infelizmente não guardei o nome dela) em que conclui que do jeito que a coisa vai, o término vai ser em algo que fará 1964 parecer fichinha. Por coincidência (ou não) uma manifestação está marcada para o dia 13 de março, mesma data do fatídico comício da Central do Brasil, em 1964, que acelerou o golpe iniciado em 31 de março e concluído em 1 de abril, mas que durou até 1985. Só que agora quem se manifesta é a oposição. E nela está José Serra, ex-líder da UNE presente na Central do Brasil; Aécio Neves, neto de Tancredo Neves, que não sei se estava no comício (acredito que não) mas ficou contra a ditadura e muitos outros que vão partilhar as mesmas manifestações (ainda que não concordando com eles) com gente que quer a ditadura. Independente de gostar ou não das duas facções atualmente em quase guerra, como os aranhas e caranguejos de antigamente, torço para que elas tenham um pouquinho de simancol e responsabilidade. Aguentar outra ditadura vai ser barra! Se aguentar! Ilustração de capa: Vicente Mendonça/Rede Brasil Atual