Quintana e Senna

No blog do Mouzar, ele diz: “Quando li num poema de Quintana o verso ‘Meus críticos passarão, eu passarinho’, eu me tornei seu fã e procurei ler muito mais dele e sobre ele”

Crédito: Dulce Helfer/CCMQ/Divulgação
Escrito en OPINIÃO el
Estou escrevendo este texto no dia 5 de maio, 25º aniversário da morte do poeta e tradutor gaúcho Mário Quintana, depois de ler a Folha de S.Paulo e não ter visto no jornal sequer uma linha sobre esta “efeméride” (ô palavra feia!). O que tem a ver? É que quatro dias atrás, 1º de maio foi também o 25º aniversário da morte de um outro brasileiro, Ayrton Senna, e essa “efeméride”, sim, teve muitas lembranças, mereceu crônicas, artigos e reportagens. Merecia? Acho que sim. Nós brasileiros andamos carentes de autoestima e é bom lembrar de conterrâneos que fazem ou fizeram muito bem o seu “ofício”. Faço referência à Folha de S.Paulo porque é o jornal que leio todos os dias, mas ocorre o mesmo com outros, com a TV, com revistas... Minha observação sobre a diferença de tratamento não é por achar desmerecidas as homenagens a Ayrton Senna. Só que o poeta merecia um pouquinho também, não? Certo, não precisaria ser igual. Não vimos nunca multidões declamando ou ouvindo poemas de Quintana, e Senna era um ídolo que arrastava multidões. Não tenho o menor interesse por corridas de automóveis, mas muita gente gosta e eu respeito. O que me levou a escrever sobre isso foi a lembrança de um artigo publicado na Folha de S.Paulo há menos de um mês. Não me lembro quem era o autor, só que era um estadunidense. Nesse artigo ele comenta que nos Estados Unidos os esportistas mortos são reverenciados, têm memoriais frequentados por um montão de gente, enquanto seus escritores e artistas não merecem um tratamento semelhante. Na Europa, há um respeito enorme pelos escritores e artistas que morreram, mas nos Estados Unidos não. O autor não pede que se diminua o “culto” aos esportistas que fizeram história no país, só gostaria que melhorasse um pouco a reverência a escritores e artistas mortos. Isso, acredito, vale também para o Brasil. E cito o piloto Ayrton Senna e o poeta e tradutor Mário Quintana, que morreram com diferença de poucos dias, em 1994, com muito respeito aos dois. Tanto na época quanto agora Quintana não chega nem a ser coadjuvante no tratamento dado pela imprensa. Em 2 de maio, dia seguinte à morte de Senna, a Folha de S.Paulo publicou um caderno inteiro sobre ele. Se me lembro bem, foram oito páginas. No dia 3 de maio, mais um caderno na Folha. No dia 4 e em não sei quantos dias seguintes também. Um caderno inteiro para ele, todos os dias. E quatro dias depois de Senna, 5 de maio, lá se foi Mário Quintana. Esperava ver na Folha pelo menos um artigo sobre ele, mas não: sua morte foi registrada em uma nota de rodapé de quatro ou cinco linhas. Enquanto isso, continuava saindo o caderno homenageando Ayrton Senna. Fiquei uns dias remoendo isso: um dos maiores poetas da história do Brasil, com décadas dedicadas à cultura, ter sua morte registrada numa notinha insossa, enquanto o piloto morto dias antes continuava merecedor de cadernos e mais cadernos com muitas páginas. Repito: não estou desmerecendo Senna. Quando a Folha publicou o artigo do gringo falando de um certo desprezo dos estadunidenses aos seus intelectuais, gostei e me lembrei das mortes de um grande esportista (consideram automobilismo esporte, não?) e um grande poeta 25 anos atrás, e a diferença de tratamentos nos dois casos. De lá para cá o jornal mudou? Ou a crítica ao que acontece nos Estados Unidos foi publicada por acaso? Aí vieram essas “efemérides”... Será que o jornal considera a obra de Mário Quintana tão inexpressiva? Porém, não é só depois da morte que uns e outros merecem reconhecimento. Seria bom que ocorresse também em vida. Aliás, nisso em alguns casos há semelhanças: grandes esportistas brasileiros terminando seus dias na miséria, sem reconhecimento efetivo das autoridades, e grandes pensadores e artistas também. Quando li num poema de Quintana o verso “Meus críticos passarão, eu passarinho”, eu me tornei seu fã e procurei ler muito mais dele e sobre ele. Mais tarde me contaram (acredito que seja verdade) que, apesar das dezenas de anos dedicados à cultura, ele não tinha dinheiro, quem pagava o hotel em que morava, em Porto Alegre, era o Falcão, jogador de futebol. Tinha muita admiração pelo Falcão e passei a admirar mais ainda. Um craque do futebol e humanista. Depois que Quintana morreu, esse hotel foi desapropriado e transformado no Centro Cultural Mário Quintana. Beleza! Um ótimo centro cultural, uma homenagem merecida. Mas fiquei ruminando: enquanto ele estava vivo, nem prefeitura nem governo estadual nem federal fizeram o que o Falcão fez. E me lembrei do final da letra de um velho samba: “Depois de morto, quero flores e nada mais”.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

Temas