Uma bússola na cabeça

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Sempre me diverti com uma coisa que acontecia­ direto nos filmes de bangue-bangue: um cavaleiro chega a um rancho, tem um moleque curioso que puxa conversa com ele, e, depois de um “olá, garoto” e qualquer frase, o cavaleiro pergunta: “Onde é o rancho WKO?” Primeiro, uma curiosidade inútil: fazenda, nos filmes de bangue-bangue, é rancho. E seus nomes são sempre duas ou três letras. Não é como aqui, Fazenda Vista Alegre, Fazenda Santa Terezinha... Mas o curioso mesmo é que o moleque não titubeia, parece que conhece tudo ali e tem um enorme senso de direção: “Siga 12 milhas ao norte e mais três a oeste”. O cavaleiro agradece e segue em determinada direção como se tivesse uma bússola. E parece ter também (no cavalo) um odômetro, o aparelhinho que mede a distância percorrida. Naquela pradaria imensa, sem nenhuma referência, sem montanhas nem nada, em uma determinada altura o sujeito vira para o oeste de repente. Exatamente ali teria dado as 12 milhas. Percorre mais três milhas e chega exatamente aonde queria. Pois fiquei sabendo que existem povos que usam sempre as coordenadas geográficas como referência. Não têm o senso de distância dos moleques e caubóis dos bangue-bangues, nunca usam as chamadas “coordenadas egocêntricas”, em que a gente se põe como referência. Não dizem “siga duas quadras à direita”, ou “é ali atrás”... É sempre assim: “Vá para o norte”. Até em coisas mínimas usam as coordenadas geográficas, segundo um excelente artigo de Guy Deutscher, publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, há algumas semanas. Por exemplo: ele avisa que há uma aranha a leste do seu pé. Ou, se está apertado no banco de um carro, pede que você vá um pouco mais para oeste... O autor se refere, nesse caso, ao idioma guugu yimithirr, de um povo aborígene da Austrália. Mas informa que vários povos da Polinésia e também os falantes do idioma tzetal, do sul do México, usam esse método de localização. Chegaram a pôr um homem que falava tzetal num quarto escuro, vendado, dar várias voltas em seu corpo e depois pedir que ele dissesse onde era o norte etc. Acertou na mosca. Curioso. Mas podemos pensar nos peixes que sobem sempre o mesmo rio para desovar, nas borboletas e aves que seguem sempre a mesma rota de migração, nas tartarugas marinhas que dão voltas ao mundo e retornam para desovar na praia onde nasceram, nas abelhas que dão notícias à colmeia de um lugar onde existem bastantes flores com néctar, por puro instinto. Será que se fôssemos acostumados desde bebês não teríamos o mesmo “poder” de referência? Aliás, fico curioso com os muçulmanos, que têm de rezar sempre virados para Meca. Precisa ter um senso danado de direção, de localização. Mas o que vejo mesmo, no dia a dia, são pessoas sem a mínima ideia de onde é o norte, o leste... Eu, se não tiver o sol como referência, fico perdido. À noite, às vezes consigo localizar o Cruzeiro do Sul. Se não conseguir, fico perdido do mesmo jeito. Mas meu amigo Gonzaguinha é muito pior. Uma vez foi conosco a Conservatória, um povoado na serra fluminense. Ficamos num hotel composto de alguns chalés em torno de uma pequena “praça”. Conversador compulsivo, na primeira noite em que estávamos lá, antes de amanhecer escutei o Gonzaguinha andando de um lado para o outro, no meio dos chalés, de vez em quando falando sozinho. Aí apareceu uma figura salvadora, um rapaz que foi varrer as folhas caídas durante a noite, na pracinha. Gonzaguinha puxou assunto com ele e ficaram conversando enquanto o rapaz varria. Então começou o nascer do sol. Gonzaguinha disse para ele em tom de admiração: — Nossa! Aqui o sol nasce daquele lado? O rapaz resmungou alguma coisa dizendo que era óbvio, e o Gonzaguinha, sei lá com que referência, disse como se isso fosse possível: — Em São Paulo, nasce daquele outro... Essa crônica é parte integrante da edição 57 da Revista do Brasil.