Outro modelo para um outro jornalismo

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Segue um artigo que escrevi para a Revista Fórum que acaba de chegar às bancas e cuja capa homenageia Florestan Fernandes, cuja morte completou 15 anos neste mês. Trata-se de uma reflexão sobre o cenário atual do jornalismo e suas possibilidades. Entre outras coisas, proponho que a sociedade comece a discutir a necessidade de um jornalismo radicalmente público.

Outro modelo para um outro jornalismo

É fundamental que se entenda que a atividade jornalística é uma necessidade para que a democracia seja exercida na sociedade contemporânea

Por Renato Rovai
[25 de agosto de 2010 - 20h59]
Os veículos tradicionais da mídia comercial brasileira vivem sua maior crise. Não apenas do ponto de vista econômico, mas também no que diz respeito à credibilidade e à própria natureza do negócio que operam. Por muito tempo detiveram o monopólio da produção e da distribuição da informação – o que lhes garantiu poder político e econômico. Hoje o modelo ruiu por conta das novas tecnologias e por isso alguns veículos radicalizaram seus posicionamentos editoriais, assumindo um discurso mais panfletário e partidarizado. A verdade é que a política editorial desses veículos não mudou, continua a mesma. Mas agora completamente descarada. Não mudou inclusive porque as famílias que controlam os grupos midiáticos no Brasil são as mesmas há algumas décadas. Exceção à Rede Record, vinculada à Igreja Universal, as famílias Marinho, Frias, Mesquita, Civita, Saad, Sirotsky e Abravanel estão no ramo há pelo menos três décadas. O último a entrar no grupo foi Silvio Santos, em 1981. Talvez até por esse motivo seja considerado o patinho feio da turma. O que fez esse grupo perder poder foi principalmente a construção de uma imensa rede de produção colaborativa de informação. A história começa em março de 1989 quando o britânico Timothy John Berners Lee apresenta ao Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear (CERN), instituto localizado em Genebra (Suiça), um projeto denominado “Gerenciamento de informação: uma proposta”. Esse projeto viria a resultar na world wide web (WWW), ou seja, a internet da forma que a conhecemos hoje e que possibilita a troca de pacote de dados via hipertexto. E tem continuidade com a criação, em 17 de dezembro de 1997, por Jorn Barger, do weblog, que depois viria a se tornar o que hoje conhecemos por blogues.

Em 1999, há pouco mais de dez anos, o número de blogues era estimado em menos de 50. No final de 2000, alguns milhares. Atualmente, segundo estudo da Technorati “State of Blogosphere”, existem mais de 130 milhões de blogues.

Essa combinação decretou o fim da era do monopólio da informação. E por mais que os veículos tradicionais de comunicação ainda tenham força para disputar a opinião pública, seu poder relativo é muito menor nesse fim de primeira década do século 21 do que em outros tempos.

A questão que se coloca hoje é como transformar essa nova esfera comunicacional em um espaço mais democrático e democratizante do ponto de vista das relações sociais. Para que isso ocorra, é preciso escapar da lógica do modelo que hoje está em crise.

Atualmente, os veículos dependem fundamentalmente da publicidade para sobreviver. E como diz o velho ditado “manda quem paga a conta”. Ou seja, eles acabam sendo porta-vozes do grande capital. Há o risco de essa lógica também vir a ser dominante no espaço virtual se o modelo de financiamento da produção e distribuição da informação não for alterado. Para que isso não aconteça, é fundamental que se entenda que o jornalismo é uma necessidade para que a democracia seja exercida na sociedade contemporânea. E por isso ele não pode ser realizado apenas por veículos que, por conta das suas opções mercadológicas e/ou políticas, consigam atrair grupos privados para financiá-los. Ao mesmo tempo não se deve supor que, para que haja diversidade informativa, apenas o fomento a iniciativas estatais com vínculos governamentais equilibra as coisas. O exemplo italiano demonstra o equívoco desta opção. Berlusconi, por exemplo, controla hoje todo o setor privado de comunicação e mais o aparato estatal, transformando a RAI em mais uma de suas empresas. Esse modelo já se mostrou, além de centralizador, viciado e inibidor da ousadia jornalística. Por isso é preciso diferenciar jornalismo público de estatal. Sua diferença básica é que o primeiro não precisa se relacionar e nem prestar contas ao governo se for realmente público. Entre as soluções existentes está a de debater quanto a sociedade está disposta a pagar para ter informação de qualidade. Para ter um jornalismo realmente independente. Na Inglaterra, por exemplo, a principal fonte de recursos da BBC é a licença de 131,50 libras esterlinas ao ano paga por todos os cidadãos que têm um aparelho de TV funcionando. Isso não quer dizer que é necessária a criação de uma nova taxa no Brasil para financiar a comunicação. Mas ao mesmo tempo seria imprescindível definir uma receita a ser utilizada para o financiamento desse jornalismo. Que também não precisaria ser como no modelo inglês, em que se construiu uma rede com o gigantismo da BBC. Poderia ser o reconhecimento de que esse jornalismo público já vem acontecendo em diferentes veículos que estão fora da lógica tradicional de mercado. E que precisariam ser estimulados. Ou seja, reconhecer que tanto na blogosfera quanto na produção impressa e eletromagnética o Brasil já tem uma quantidade grande de veículos que, se incentivados, poderiam gerar uma diversidade informativa que melhoraria em muito a qualidade da nossa democracia. Um modelo que poderia servir como exemplo é o do financiamento das universidades públicas. Nelas, apesar de os recursos serem públicos, a autonomia e a independência são respeitadas. O que permite nesses espaços uma ampla pluralidade de opiniões. Para construir um outro jornalismo é fundamental discutir também o seu financiamento. E ao mesmo tempo debater quais deveriam ser os compromissos que este jornalismo radicalmente público deveria assumir com a sociedade. Entre eles deveriam se destacar o respeito a um código de ética da comunicação pública a ser construído a partir de um amplo debate, tanto entre especialistas da área como em consultas públicas. Um código que se tornaria uma legislação específica. Também seria compromisso fundamental que a informação produzida por esses veículos fosse de livre circulação. Que não tivesse sua circulação impedida por contratos de direitos autorais restritivos. A criação deste novo modelo não impediria e nem limitaria a continuidade do modelo comercial tradicional. Ou seja, a informação produzida e distribuída na lógica da mercadoria continuaria existindo, mas não teria exclusividade de mercado. Concorreria com uma outra produção sustentada por todos que necessitam de informação para exercer a cidadania. Esse debate permite uma série de outras considerações. O que é certo é que o atual momento é o mais rico em possibilidades para que a correlação de forças no espaço da comunicação se altere de forma definitiva. A correlação de forças, neste caso, se dá entre o que é público e o que é privado, e entre o direito à comunicação e ela apenas como mercadoria. Mas para que essa mudança aconteça é preciso criar mecanismos para que, por um lado, as novas tecnologias de comunicação não sejam completamente controladas pelos grandes grupos. E, por outro, para que essa enorme rede de produtores de informação tenha condições de sobrevivência econômica. Ambos os desafios são difíceis de enfrentar, mas o segundo é ainda mais complexo porque não se resolve apenas na base da resistência. É preciso se desafiar a construir o novo. Ou seja, um novo modelo. E para que isso aconteça é preciso estar livre para a reinvenção das nossas expectativas. Não podemos mais pensar em veículos de comunicação como aparelhos ideológicos. Eles devem ser espaços da garantia da multiplicidade.

Dicas

Um livro Cultura Digital.br Organização: Rodrigo Savazoni e Sergio Cohn Azougue Editorial – 2009 Uma série de 20 entrevistas debatendo aspectos da cultura digital: política, economia, infraestrutura, arte, comunicação e a memória. Segundo Savazoni, trata-se de um caderno de provocações. Diria que também é isso, mas é muito mais. O trabalho mais completo sobre o tema publicado no Brasil. É possível baixá-lo gratuitamente no culturadigital.br. Entre os entrevistados: Juca Ferreira, Gilberto Gil, Ladislau Dowbor, Sérgio Amadeu e Laymert Garcia dos Santos. Um filme Viva Zapatero! Direção: Sabina Guzzanti A atriz e diretora Sabina Guzzanti utiliza uma experiência que viveu para discutir o modelo da RAI, TV estatal italiana. Ela escreveu para a emissora um programa de humor intitulado "RaiOT", inspirado entre outros no brasileiro "Casseta e Planeta". O programa teve uma única edição e foi cancelado porque, entre outros motivos, satirizava Berlusconi. O título "Viva Zapatero!" é uma referência a José Luis Rodríguez Zapatero que, ao assumir o governo acabou com as nomeações políticas na TV estatal espanhola. Um site http://kucinski.wordpress.com/ Bernardo Kucinski, professor aposentado da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) é um dos maiores especialistas em mídia alternativa. No entanto, depois de trabalhar por quatro anos no governo federal, ele decidiu estudar a comunicação pública. Como resultado realizou um curso sobre o tema na USP. Os papers utilizados neste curso e os textos por ele produzidos podem ser acessados neste site. Eles estão nos meses de março, abril, maio e junho de 2009. Em fevereiro de 2010, se encontra um Código de Ética na Comunicação Pública de Governo que foi desenvolvido pelos alunos do curso, sob a coordenação de Kucinski pelos alunos do curso. *Renato Rovai é jornalista, editor da revista Fórum e mestre em Comunicação pela USP. Também é autor de Midiático Poder, o Caso Venezuela e a Guerrilha Informativa. No Twitter: @renato_rovai.